sábado, 15 de maio de 2021

Escritor lança livro sobre conflitos de um professor que ajuda menino vítima de abuso

"O Ato do Tio" é um romance que narra a trajetória de um educador que tem que lidar com seus traumas ao se envolver no dilema de um aluno numa família disfuncional; história se passa no município de Cariacic disfuncional; história se passa no município de Cariacica

O escritor Hugo Estanislau escreve sobre aquilo que o incomoda. Assim, resolveu colocar em evidência um contexto presente e silencioso: o do abuso parental, que inúmeras vezes passa despercebido e que, em tempos de pandemia e de isolamento social, ficou mais ainda camuflado e difícil de identificar e de combater. 

Em "O Ato do Tio" (188 páginas, Editora Pedregulho, R$ 40), ele traz um professor de Educação Infantil, o tio Edmar, que começa a perceber, a partir dos desenhos e do comportamento cada vez mais recluso do menino João, que há algo estranho. Quase como se o garoto emitisse um pedido de socorro.

O livro terá lançamento virtual neste sábado (14), às 18h, no perfil da editora do Instagram, com direito a um bate-papo literário onde o autor de 31 anos, morador de Cariacica, irá abordar seu método criativo. Formado em Letras pela Ufes, premiado pelo prêmio "Ufes de Literatura" em 2014 e autor do livro "Boneca: atrás da feição oCa" (2016), o escritor convida a leitora (sim, ele prefere se dirigir a elas em primeiro lugar) a percorrer uma história com um quê de detetive, mas que passa também por descobertas interiores, feitas pelo professor ao se confrontar com o que ele observa do cotidiano do garoto.

Foto: Divulgação
Escritor Hugo Estanislau, autor de "O Ato do Tio": "Eu queria tocar nessa ferida para que ela fosse vista"

Ele passa a lembrar da própria infância e, a partir daí de seus traumas e de suas próprias dores, confrontando com o seu jeito de se colocar no mundo. Ao entrar em contato com o padrasto da criança, surge um flerte que poderá colocar o professor em situações perigosas. 

A história é desenvolvida numa Cariacica contemporânea, com referências de hoje. O autor coloca para a leitora uma cidade visceral, com os moradores do relato exercitando um preconceito racial e de gênero, dependendo de onde você mora. Tudo sob influência da informação instantânea saída da mídia tradicional e de "adaptações" das notícias compartilhadas nos aplicativos de mensagem. Confira abaixo a entrevista com o escritor.

Na história, o professor identifica uma criança que pode ser vítima de abuso em casa. Você pensou em seu livro como uma forma de alerta a esse tipo de violência, assustadoramente tão recorrente e silenciosa em nossos dias?

Sim, e esse fato até me incomoda: mais um livro cheio de gatilhos que trata de violência sexual contra o menor. Mas é uma realidade. Eu sempre pesquiso para produzir e, infelizmente, em 2019 o Brasil teve 66 mil casos documentados de estupro e, desses, 58% eram contra crianças de até 13 anos; 84% eram cometidos por pessoas da família. Um estupro a cada oito minutos! É uma realidade tão perturbadora quanto a retratada no livro, ou até mais. O efeitos nos sujeitos violados duram uma vida inteira e são os mais diversos. Uma forma de ultrapassar esses números vergonhosos seria com a Educação, o que está cada vez mais longe de ocorrer pelo desconhecimento e preconceito que a sociedade trata a educação sexual na escola. Logo, eu queria tocar nessa ferida para que ela fosse vista.

Na construção do protagonista, o professor Edmar é um homem jovem gay, que reluta em certos aspectos da sua sexualidade. Mesmo assim, o romance apresenta o personagem de uma maneira sem levantar bandeiras mas também sem o colocar como um personagem de uma forma marginal, como se fosse um ponto fora da curva. Ele é gente como a gente, digamos assim. Essa opção vai ao encontro do que estamos vivendo hoje, ou seja, cada vez mais temos uma vontade, uma tolerância maior pela diversidade?

Edmar é uma pessoa que paga suas contas, cuidou da avó idosa conivente à violência que ele sofreu, estuda, trabalha... É um cidadão como qualquer outra e outro desse país cheio de veredas. Eu gostaria que ele fosse, tivesse sido, mais livre em sua sexualidade e levantado bastante bandeira, assim como o é o personagem Wiliam. Mas um livro não obedece a todas as vontades do escritor. Além do mais, a consciência de classe, não me parece algo que faça parte do grupo social que ele pertence, nem ao local que ele habita. A família tradicional, cristã e "imigrante" é heteronormativa, machista... Nesse espaço não há tolerância, a não ser que se ocupe o lugar estanho do gay, perdoe-me a expressão, "fora do meio".

Sobre o professor Edmar, ele é puramente ficcional ou carrega referências suas ou de pessoas de sua convivência?

"O Ato do Tio" é um livro de ficção, nada é real, apesar das técnicas usadas no livro apontarem o contrário. Edmar, enquanto herói do livro, carrega um pouco de mim, principalmente, quanto ao que passou de intimidação social, bullying. Incuti nele muitos traumas que eu tive. Passei inúmeras situações de bullying na escola e fora da escola, por ser gay e não ter a cor de pele predominante na escola onde estudei. Nessas situações eu fui salvo por professores, principalmente, os de `Português. Logo, quis prestar homenagens a eles que são, na maioria das vezes, um porto seguro para os alunos com problemas, como eu fui um dia.

O narrador da história chama quem está lendo de “leitora”, acenando diversas vezes ao público feminino. Mulheres, então, estão lendo mais?

Mulheres leem mais que homens. Dados de pesquisas mostram que mulheres são 52% dos leitores no Brasil. Eu acho que são muito mais. Falo isso, pois minha editora, Marília Carreiro Fernandes, da Editora Pedregulho, contou-me inúmeras vezes: a maioria das vendas da editora são para mulheres. Além disso, em uma rápida pesquisa nas contas de “bookstagram” no Instagram é possível verificar que há mais mulheres que homens. Então, por que o narrador deveria dialogar com “o leitor”? Para obedecer a uma regra de “Dom Casmurro”? Ou, ainda, eu poderia usar um marcador sem gênero? Não. Achei melhor dar nome e glória a elas. Por último, eu queria incomodar o público masculino, que é o grande vilão do livro.

A Cariacica que você retrata no livro é como se fosse uma personagem à parte. Os lugares descritos ali estão na memória coletiva de quem lê “O Ato do Tio”. Diferente de grande parte dos escritores locais que preferem remeter a uma Cariacica nostálgica da infância ou a uma Cariacica de panfleto turístico (com referências ao congo e ao Mochuara), você prefere demarcar certos territórios da cidade numa crítica à “Cariacica dos brancos, dos descendentes de italianos...” A cidade tem esses territórios? De que forma isso acabou se desenvolvendo na história?

A “Cariacica branca” do livro surgiu de uma observação minha que pode ser constatada. Nos bairros mais valorizados de nossa cidade, o que impera é a branquitude e uma certa cultura do imigrante. Há certo orgulho de se dizer que se mora em Campo Grande, antes de se dizer morador de Cariacia. Se for descendente de imigrante branco, então, melhor ainda a pompa. Há até quem defenda (o que é normal para nossa classe média) a criação de um novo município só com os bairros “importantes”, ou os bairros que “sustentam a cidade”. Há muito disso onde moro, infelizmente. Moro em um lugar que até os cachorros, com lar, estão acostumados a latir para negros que passam na rua. Toda essa atmosfera de privilégios aos brancos imigrantes, a objetificação do corpo negro e o preconceito de dar um rosto (sempre o negro) à violência foi uma problemática que não tinha como não crescer em um livro que tem o intuito de incomodar.   

Serviço: 

Lançamento virtual do livro "O Ato do Tio": bate-papo literário com o autor Hugo Estanislau com a participação do escritor Henrique Pariz  (@palavrasmargina_es) e da jornalista Lívia Corbellari (@livrosporlívia).

Quando: neste sábado (15), às 18h.

Onde: live no perfil da editora Pedregulho no Instagram (@editorapedregulho)

Onde adquirir o livro: site da editora Pedregulho (www.editorapedregulho.com.br) ou com o próprio autor enviando um direct no Instagram para @estanislau.hugo. Pagamento no Pix (chave: oatodotio@gmail.com) ou pelo PicPay

Preço de capa: R$ 40

Leia um trecho:

"O desenho de João? Bem, esse representava um homem careca sem camisa. Fortemente contornado. As duas sobrancelhas pretas apertando na testa uma cara de bravo. Os dentes à mostra, uma mancha preta no braço... Seria uma tatuagem? Só isso. 
Com o caderno à sua frente, Edmar ainda passou alguns segundos tentando decifrar aquele homem ali retratado; tempo que as crianças notaram. Gritaram, mais ainda, quando João pegou o caderno da mesa de Edmar e foi correndo para sua carteira.
- Tá bom, tá bom... Silêncio! - Edmar respirou. 
Continuou: 
- O próximo é quem?
O desenho não era nada ainda: um pai com cara de bravo não era o bastante para que Edmar fizesse algo, para que ele desconfiasse. Apenas no outro dia, oito de agosto quando viu o desenho que João colou no mural ele se deu conta  do estranho. Mas não contou a ninguém. Só ele tinha visto o desenho que João tinha feito do pai, ou será que também alguns dos coleguinhas? Ia, por acaso, sair perguntando às crianças? Não, Edmar, não".

 fonte:https://www.folhavitoria.com.br  




Foto: Divulgação

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