O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/90, marco legal que estabelece os princípios e as diretrizes para a proteção integral de crianças e adolescentes no Brasil, reconhecendo-os como sujeitos de direitos, completa 35 anos neste domingo (13/7). É uma data a ser comemorada, pois o ECA é o resultado de um longo processo de mobilização social e luta pelos direitos da infância e da adolescência, conforme preconiza a Convenção sobre os Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas (ONU).
O ano era 1990. O Brasil ainda iniciava seu processo de redemocratização, com a eleição direta de Fernando Collor, a primeira após um longo período de ditadura militar. A chamada "Constituição Cidadã", promulgada em 1988, ainda era recente, mas teria papel fundamental nas próximas décadas, estabelecendo, inclusive, as diretrizes do próprio ECA.
A economia brasileira apresentava inflação que batia 1.500% ao ano; no esporte, o País vibrava com as vitórias do piloto Ayrton Senna nos circuitos da Fórmula 1; no âmbito internacional, o mundo testemunhava o fim da Guerra Fria e do regime do apartheid na África do Sul.
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Mobilização social
Em 13 de julho de 1990, o Estatuto foi promulgado pelo então presidente Fernando Collor, após um longo processo de elaboração, iniciado com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que já estabelecia a proteção integral à criança e ao adolescente, por meio do artigo 227. Antes da promulgação, uma grande mobilização social colheu mais de um milhão de assinaturas para pressionar o Congresso Nacional.
O trabalho contou com a participação do parlamentar mineiro Ronan Tito, falecido em abril de 2025 aos 93 anos, autor do Projeto de Lei nº 193/1989, que deu origem ao ECA, considerado por muitos juristas como uma das legislações mais avançadas sobre o tema em todo o mundo. Ao defender o texto no plenário da Câmara Federal, em setembro de 1989, o parlamentar foi enfático:
"O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma proposta moderna, consequente, humana e acima de tudo brasileira. Procura resgatar a dívida do Estado e da sociedade para com a infância e a juventude, reconhecendo que este é o segmento mais vulnerável da população e, por isso mesmo, aquele que deve merecer prioridade absoluta."
"Casos de polícia"
A proposta foi aprovada por unanimidade no Congresso, antes de sanção presidencial. O ECA entrou em vigor em 12 de outubro de 1990, data em que se comemora o Dia das Crianças.
Para parte da sociedade, o Estatuto representa um mecanismo a mais para proteger crianças e adolescentes, que não seriam mais tratados como criminosos comuns, conforme preconizava o antigo Código de Menores, de 1979. A antiga legislação impulsionava um sistema repressivo e assistencialista, tratando crianças e adolescentes como "casos de polícia" e não como titulares de direitos.
Lei viva
Na visão da superintendente da Coordenadoria da Infância e da Adolescência (Coinj) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, desembargadora Alice Birchal, nas últimas décadas, o ECA consolidou a doutrina da proteção integral, além de instituir a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, com prioridades absolutas. "Trata-se de uma lei viva, que está em constante evolução", afirmou.
Ela também ressaltou que toda a trajetória tem sido acompanhada de perto pelo Poder Judiciário, especialmente em Minas Gerais, por meio da atuação da Coinj, que desenvolve e implementa políticas públicas que garantem a convivência familiar e comunitária, escuta qualificada, prioridade no acesso à Justiça, além de respeitar a condição peculiar de desenvolvimento de crianças e adolescentes, conforme Resolução nº 470/2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que instituiu a Política Judiciária Nacional para a Primeira Infância.
Para a desembargadora Alice Birchal, um dos pontos de maior destaque do ECA é a inclusão de crianças e adolescentes no orçamento da União, dos governos estaduais e dos municípios, garantindo a implementação de políticas públicas que atingem milhares de famílias e garantindo direitos às crianças, desde a gestação até os 18 anos.
"Reitero o compromisso do TJMG, por meio da Coinj, com a defesa intransigente dos direitos da infância e da juventude, reafirmando a promoção de políticas públicas em consonância com toda a trajetória destes 35 anos do ECA e os desafios contemporâneos que se apresentam", frisou.
Vara da Infância
O desembargador do TJMG Marcos Padula ingressou na magistratura em 1989, pouco antes da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Quando atuou na Comarca de Uberaba, no Triângulo Mineiro, especializou-se na área da infância. Ao ser transferido para a Capital, tornou-se referência no assunto, atuando por mais de 10 anos na Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Belo Horizonte.
Ele salientou que o ECA foi um marco legislativo que mudou todo o parâmetro do antigo Código de Menores, dando um enfoque muito mais protetivo do que punitivo. "Era o momento da redemocratização do País, que saía da ditadura militar. Naquela época, muitos criticaram a nova legislação, principalmente pelo fato de ser mais protetiva do que punitiva, mas trouxe benefícios para a sociedade, principalmente para crianças e adolescentes com menores condições socioeconômicas, além de possibilitar a criação dos conselhos tutelares e ampliar a atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública", disse o desembargador.
Segundo o magistrado, a reestruturação das Varas da Infância em prol do Estatuto possibilitou a integração de todas estas instituições voltadas aos direitos das crianças e dos adolescentes.
"O que era atribuição de uma vara comum passou a ser atribuição de uma vara especializada, o mais indicado, pois as crianças devem ter tratamento especial. Eu, particularmente, me lembro de determinar bloqueios judiciais em contas de prefeituras, por exemplo, para garantir direitos de crianças e adolescentes. O ECA também trouxe maior responsabilidade dos pais em relação às suas obrigações familiares, além de regulamentar as adoções em todo o País"
Sociedade justa
Com 18 anos dedicados à Justiça da infância e da juventude, a ex-superintendente da Coinj do TJMG, desembargadora Valéria Rodrigues, observou que o ECA representa um marco histórico na proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil, ao estabelecer princípios, diretrizes e normas que garantem a proteção integral, além de reconhecer os jovens até 18 anos como sujeitos de direitos e não apenas como "meros objetos".
"O Estatuto possibilitou reconhecimento de crianças e adolescentes, que antes eram tratados de forma assistencialista e punitiva. O ECA rompe com essa visão, garantindo direitos sociais, civis, econômicos e culturais, com base na proteção integral, ampliando o acesso à saúde e educação"
Para ela, o Estatuto é "um instrumento fundamental para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e humanizada, reconhecendo crianças e adolescentes como prioridade absoluta, conforme previsto na Constituição. No entanto, sua eficácia depende da implementação prática das suas diretrizes e do comprometimento contínuo da sociedade, do Estado e da família".
Humildade
O titular da 2ª Vara Especializada em Crimes contra a Criança e o Adolescente (Vecca) da Comarca de Belo Horizonte e coordenador executivo da Coinj do TJMG, juiz José Honório de Rezende, é uma das referências no Poder Judiciário na área da infância e da juventude em Minas Gerais e no País.
Mas essa atuação não estava em seus planos quando ingressou na magistratura em 2005, há exatos 20 anos. Ele esperava atuar em uma Vara de Fazenda Pública, para aproveitar sua experiência como procurador do Estado. Contudo, foi designado para cooperar nas Varas Cíveis e Infracionais de Belo Horizonte. Era para ter cooperado por alguns meses, mas permaneceu por oito anos.
"A experiência que acumulei nesse período não acumularia em outras áreas. Há um mundo invisível que desconhecemos. O maior choque foi com os meus próprios estereótipos. E destaco o adolescente envolvido com atos infracionais. Naquele momento, o estigma era muito forte. Não era diferente comigo. O contato com o adolescente mudou tudo. Vi um ser humano, com sonhos, desejos, sofrimentos e muita privação. Acreditei, então, que poderia fazer alguma diferença. Por isso, segui adiante. E estou até hoje nessa área"
Para ele, lidar com crianças e adolescentes exige muito de um magistrado, que se depara com situações que podem gerar soluções difíceis, fazendo com que o profissional mude a forma de enxergar a vida. "Eu que entrei arrogante na magistratura, cheio de saberes, de poderes, me vi transformando numa pessoa humilde diante de tantas limitações que a vida nos traz", admitiu.
O juiz José Honório de Rezende lembrou ainda que o ECA, em seus primeiros anos, era pouco acreditado, pouco estudado e muito criticado, por vezes, de forma injusta. "Eram críticas feitas por pessoas que não o conheciam. Eu era um deles. Tive que estudar todo o Estatuto para poder entendê-lo. Fui percebendo a sua forma e sua importância. São países como o Brasil que precisam de uma lei como essa. É uma lei que obriga todos à proteção. Isso deveria ser natural. Crianças e adolescentes precisam de proteção pela condição biológica. A partir do ECA, uma nova realidade surgiu. A infância e a juventude passaram a ser foco de atenção. Novos deveres foram criados em nossa ordem jurídica", disse.
Novo olhar
Para a titular da Vara Infracional de Belo Horizonte, juíza Riza Aparecida Nery, mais do que uma data comemorativa, os 35 anos do ECA são um convite à reflexão sobre os avanços, os desafios persistentes e a importância histórica da legislação que transformou a forma como o Brasil enxerga suas crianças e adolescentes.
"O Estatuto consolidou uma mudança de paradigma ao romper com a lógica punitivista do antigo Código de Menores e consagrou um novo olhar sobre a infância e a adolescência, atribuindo à família, à sociedade e ao Estado o dever compartilhado de assegurar, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais de crianças e adolescentes"
A magistrada ressaltou que a adolescência é uma fase de transição marcada por intensas mudanças físicas, emocionais e sociais, em que o jovem busca construir sua identidade e redefinir vínculos.
"Essa vulnerabilidade pode expô-lo a situações de risco, exigindo do Poder Público ações de escuta, proteção e inclusão. Celebrar os 35 anos do ECA é renovar o compromisso com uma sociedade mais justa, reconhecendo a infância e a adolescência como etapas essenciais do desenvolvimento e destacando a importância da atuação conjunta de instituições, profissionais e políticas públicas na garantia desses direitos", enfatizou a juíza Riza Nery.
Grupos vulneráveis
O coordenador da Defensoria Especializada dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes – Cível (Dedica-Cível), defensor público Wellerson Eduardo da Silva Corrêa, destacou que o ECA possibilitou uma grande reestruturação das defensorias em todo o País, consideradas as portas de entrada de crianças e adolescentes no Sistema Judiciário nacional.
"A Defensoria Pública de Minas Gerais, juntamente com a Defensoria do Rio de Janeiro, foram as primeiras a se especializarem na temática 'criança e adolescente'. Exercemos o papel fundamental de receber as crianças, garantindo a todas acesso gratuito à Justiça", frisou.
Ele também ressaltou que, em decorrência do Estatuto da Criança e do Adolescente, as defensorias passaram a ter papel fundamental no atendimento dos grupos considerados vulneráveis, além das crianças, como mulheres vítimas de violência, LGBTQIA+, idosos, vítimas de catástrofes, quilombolas, pessoas em ocupações, entre outros grupos.
"Apesar dos avanços, ainda temos muito que conquistar. Acho que precisamos de mais varas, delegacias e promotorias especializadas no tema, principalmente em cidades do interior mineiro, para que mais pessoas tenham seus direitos garantidos"
A promotora Graciele Rezende lembrou que ainda existem muitos problemas a serem resolvidos na questão da infância (Crédito: Divulgação / TJMG)
Obstáculos
A coordenadora do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa da Infância e Juventude (Caodca) do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), promotora de Justiça Graciele de Rezende Almeida, também ressaltou os avanços apresentados pelo ECA desde a sua criação há 35 anos.
"A lei não tem, por si só, o potencial de transformar a realidade. Mas ela indica a direção a ser seguida. No caso do Estatuto da Criança e do Adolescente, o norte legal nos conduziu a um marco histórico na proteção dos direitos infantojuvenis no Brasil. Ao estabelecer um sistema de garantias robusto, com a criação de novos instrumentos como os Conselhos Tutelares e os Conselhos de Direitos, além de regulamentar a adoção de forma mais humanizada e instituir o Sistema Socioeducativo diferenciado. A redução significativa da mortalidade infantil, o aumento do acesso à educação e os avanços nas políticas de proteção são reflexos diretos dessa legislação"
Contudo, ela afirmou que as instituições ainda esbarram em muitos obstáculos, como centros de internação inadequados e a falta ou implementação deficiente, em municípios, de programas de execução de medidas socioeducativas. "Essas deficiências comprometem a capacidade do Sistema Socioeducativo de cumprir suas finalidades", finalizou.
Fábio Meirelles é o atual diretor de Proteção da Criança e Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (Crédito: Divulgação / TJMG)
Maturidade
O diretor de Proteção da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), Fábio Meirelles, celebrou os 35 anos do ECA, em um momento, segundo ele, em que a sociedade demonstra maturidade em relação ao conjunto de leis que abordam a infância e a adolescência.
"O Governo Federal atua em várias frentes para garantir os direitos de crianças e adolescentes, atuando com sistemas de educação, saúde e assistência social que dão lastro ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Temos uma série de compromissos como educação em tempo integral, 'Bolsa Família', vacinação, entre outras políticas estruturantes que respondem aos desafios trazidos pelo ECA", disse.
Ele também reconheceu que ainda há muito que fazer, principalmente para combater a violência sexual contra crianças e adolescentes, violência letal contra negros e pobres, além de combater o trabalho infantil.
"Percebemos uma grande aceitação e maturidade da sociedade em relação aos direitos das crianças. Só no ano passado, por exemplo, o Ministério do Trabalho, em uma ação conjunta com outras áreas, conseguiu retirar mais de 1,2 mil crianças do trabalho infantil, graças a denúncias anônimas que recebemos por meio do nosso canal Disque 100"
Fonte: TJMG
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