domingo, 27 de agosto de 2023

O risco do porte de arma no Conselho Tutelar.


"A relação do Conselho Tutelar com as comunidades e famílias, seu ingresso e trânsito nos territórios, depende da constituição de relação de confiança e respeito mútuo, não do porte de armas", alerta José Carlos Sturza de Moraes, cientista Social, mestre em Educação, especialista em Ética e Educação em Direitos Humanos e Especialista em Educação de Jovens e Adultos e Educação de Privados de Liberdade.

Eis o artigo.

Se não vejo na criança uma criança, é porque alguém a violentou antes, e o que vejo é o que sobrou de tudo que lhe foi tirado. Essa que vejo na rua sem pai, sem mãe, sem casa, cama e comida, essa que vive a solidão das noites sem gente por perto, é um grito, é um espanto. Diante dela, o mundo deveria parar para começar um novo encontro, porque a criança é o princípio sem fim e o seu fim é o fim de todos nós. (Herbert de Souza, Betinho)

A Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados aprovou no dia 16 de agosto de 2023, em caráter conclusivo, a inclusão de conselheiros (as) tutelares entre as ocupações profissionais com autorização de porte de arma de fogo durante o exercício de seus mandatos. Tal decisão pode assegurar que a matéria não seja apreciada no plenário da Câmara dos Deputados, caso seja aprovada também na Comissão de Constituição e Justiça.

A partir de projeto do Deputado Federal Marcos Pollon (PL/MS), apresentado em maio deste ano, pode ser alterado o artigo 6º da Lei nº 10.826/2003 que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição no Brasil, acrescentando o Conselho Tutelar, órgão zelador dos direitos de crianças e adolescentes, entre aqueles que teriam direito ao porte de arma de fogo.

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A tramitação extremamente rápida na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado é preocupante. O proponente, um entusiasta do armamentismo, é fundador do PROARMAS (Associação Nacional Movimento Pro Armas), com discurso que defende o porte de armas de forma absolutamente indiscriminado em nome da liberdade.

Segundo a exposição de motivos do PL 2.586/2023, o projeto visa “possibilitar a legítima defesa tendo em vista a relevância da função exercida pelos conselheiros tutelares, visto que não possuem direito ao porte de arma de fogo, mesmo exercendo função que os expõe a risco à sua vida e integridade física”.

Ocorre que, pelo contrário, pode expor a demasiado e desnecessário risco as pessoas que desempenham a função conselheira, visto que comumente realizam visitas domiciliares e abordagens em vias públicas, de maneira individual ou, no máximo, em duplas, assemelhando suas ações mais a agentes comunitários de saúde, assistentes sociais e lideranças comunitárias, do que com a de oficiais de justiça ou policiais.

Portanto, tratando-se de ações cotidianas em que o porte de arma de fogo, pode, ao invés de assegurar proteção, oferecer o contrário, um maior risco a integridade de conselheiros e conselheiras, assim como das famílias e das crianças e adolescentes. Visto que esses agentes públicos podem virar alvo de abordagens do crime organizado, por conta do possível porte de arma e, portanto, de um bem desejável à criminalidade.

Ademais, o Conselho Tutelar não faz parte do Sistema de Justiça e Segurança. É órgão não jurisdicional e integra o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), com a prerrogativa de promover a execução de suas decisões, podendo para tanto requisitar serviços públicos, entre os quais exatamente os de segurança pública (Artigo 136, III, a). E, desde 2022, com a aprovação da Lei 14.344 (Lei Henry Borel), foram incluídas novas atribuições aos Conselhos Tutelares no artigo 136, nenhuma das quais alterando a essência de seu lugar no sistema protetivo brasileiro, deixando claro que ao órgão zelador de direitos cabe demandar quando necessário ações de natureza policial a outras autoridades públicas, como por exemplo, as expressas nos incisos a seguir elencados:

XV - representar à autoridade judicial ou policial para requerer o afastamento do agressor do lar, do domicílio ou do local de convivência com a vítima nos casos de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente;

XVI - representar à autoridade judicial para requerer a concessão de medida protetiva de urgência à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violência doméstica e familiar, bem como a revisão daquelas já concedidas;

XVII - representar ao Ministério Público para requerer a propositura de ação cautelar de antecipação de produção de prova nas causas que envolvam violência contra a criança e o adolescente;

XX - representar à autoridade judicial ou ao Ministério Público para requerer a concessão de medidas cautelares direta ou indiretamente relacionada à eficácia da proteção de noticiante ou denunciante de informações de crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente.
Demandar ações ao Sistema de Justiça e Segurança, que integra o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, é diferente de as executar ou trazer para si tais ações.

Além disso, infelizmente, em boa parte dos casos em que foram vítimas as pessoas investidas no cargo de conselheiras tutelares, há indícios de uma postura estranha ao que deveria ser o fazer conselheiro. Inclusive, ainda hoje, muitas pessoas conselheiras fazendo questão de andarem uniformizadas de preto, com brasão da república, portando cordão com insígnias que fogem do formato dos crachás usuais de serviços públicos e se assemelham, assim como as camisetas e coletes, aos uniformes das polícias civis. Conduta que tende a intimidação e, como resultado possível, atitudes violentas.

Portanto, se de um lado parte dos conselheiros e conselheiras tutelares agem enquanto policiais de famílias e do social, com atitudes de intimidação, por outro lado se expõe como se policiais fossem.

A Resolução 113/2006, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que institucionaliza o SGDCA é muito clara, quanto ao lugar dos Conselhos Tutelares no sistema:

Art. 10. Os conselhos tutelares são órgãos contenciosos não jurisdicionais, encarregados de “zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente”, particularmente através da aplicação de medidas especiais de proteção a crianças e adolescentes com direitos ameaçados ou violados e através da aplicação de medidas especiais a pais ou responsáveis (art. 136, I e II da Lei nº 8.069/1990). Parágrafo único. Os conselhos tutelares não são entidades, programas ou serviços de proteção, previstos nos arts. 87, inciso III a V, 90 e 118, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente. (Brasil, 2006)
A relação do Conselho Tutelar com as comunidades e famílias, seu ingresso e trânsito nos territórios, depende da constituição de relação de confiança e respeito mútuo, não do porte de armas. Um respeito que todas as instituições, organizações e órgãos, públicos ou não, precisam estabelecer e nutrir para com a sociedade. Respeito que não é estabelecido com ameaças e nem com o uso de equipamentos de segurança letais, que deveriam ser privativos das forças de segurança.

Na verdade, se precisa é que ocorreram desarmamentos no SGDCA, no Sistema Único de Assistência Social, de Saúde e no próprio Sistema de Justiça e Segurança. Desarmamentos que têm a ver com a compreensão de que a população, inclusive aquela mais empobrecida, é cidadã e têm direitos constitucionais. Situação que não se vislumbra quando se percebem ameaças explícitas. Como, por exemplo, a usual utilização em postos de saúde, hospitais, escolas, conselhos tutelares, unidades da defensoria pública, entre outros, de cartazes, com letras enormes, contendo o texto do Artigo 331 do Código Penal, que diz respeito ao crime de desacato. Que desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela pode gerar pena de detenção de seis meses a dois anos, ou multa.

Tal uso, quando esse cartaz ou esse artigo, não é acompanhado de seu equivalente legal que diga dos direitos da pessoa ser bem atendida e para onde pode encaminhar suas eventuais sugestões de melhoria, reclamações e, mesmo, denúncias (preferencialmente por meio telefônico e/ou eletrônico de fácil acesso), é uma violência institucional. Afinal, o respeito precisa ser recíproco. E existem situações em que a impostura de quem atende, por suas limitações ou equívocos, ou ainda pelas consequências da falta de condições de trabalho e de atendimento, podem ser consideradas crime. Não só de funcionários/as público/as, mas também por agentes de empresas e/ou organizações sociais.

Sendo outro exemplo o uso indiscriminado da expressão denúncia como sinônimo de comunicação, notificação e pedido de ajuda. Situação que, se sabe, inibe a comunicação de violências, ainda que com os agravamentos das consequências legais da omissão trazidos pela Lei Henry Borel. Expressão que aumenta as situações de subnotificação existentes na área de direitos humanos, especialmente contra crianças e adolescentes. Apesar da expressão ser estranha ao texto estatutário dos direitos da criança e do adolescente a até a vigência da Lei Lei 14.344/2022.

Em 1997, em Porto Alegre, se criou (Conselhos Tutelares, Ministério Público e Secretarias Estadual e Municipal de Educação), com excepcional apoio da Equipe Técnica de Apoio Operacional aos Conselhos Tutelares, a Ficha de Comunicação de Aluno Infrequente (FICAI), visto que a lógica era, e precisa ser, protetiva e não repressiva. E, portanto, comunicação e não denúncia.

Denunciar tem em acusar seu sinônimo mais usual, enquanto que comunicar é ato de conversação e seu sinônimo mais usual pode ser informar. Como se sabe na área da defesa de direitos humanos de crianças e adolescentes, muitas pessoas não comunicam situações ao CT e a outras agências protetivas porque não têm certeza do fato. Não querem acusar sem provas e têm medo de “se complicar”. Mais que julgar esses receios alheios tem-se que mitigá-los e ver como melhorar nossos sistemas comunicacionais. No caso da comunicação de situações de potencial perigo e desproteção o ECA nos ajuda: pede para que as pessoas comuniquem. A linguagem da polícia de famílias e/ou do social, impregnada do discurso jurídico, é que criou (e ainda sustenta) o termo “denúncia”. Mudar, nos adequando ao ECA, pode implicar em redução da subnotificação de desproteções e contribuir para a redução da produção da criminalização do social. (MORAES, 2021, p. 177-178).

O Estatuto convoca a sociedade, desde o artigo 13, convoca a comunicar ao Conselho Tutelar os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente. Assim como aos dirigentes de estabelecimentos de educação básica que comuniquem os casos de maus-tratos envolvendo seus alunos, a reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares e os elevados níveis de repetência (Art. 56). Não convoca à denúncia.

Conselheiros e conselheiras que atuam de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, buscando agir em colegiado e em rede, com atenção expressa as suas atribuições contidas no Estatuto e que não exorbitam de seu cargo, não têm porque pensar em utilizar arma de fogo como uma necessidade funcional. Já aqueles e aquelas que não o fazem, nem integrar o Conselho Tutelar deveriam.

Que nos armemos de solidariedade, de empatia e de compaixão. Assim como com a proteção daquele ou daqueles e daquelas que nunca dormem e não nos deixam sós, mesmo quando sós pensamos estar.


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