Caso emblemático de violência que ocorreu há 50 anos no Espírito Santo deu origem a data, marcada em 18 de maio.
Diariamente, 55 crianças e adolescentes no Brasil são vítimas de violência sexual, segundo dados do Observatório da Criança da Fundção Abrinq, compilado a partir de estatísticas oficiais.
Edição mais recente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública , de 2022, mostra que 61,3% dos boletins de ocorrência de vítimas estupro no Brasil foram de crianças de até 13 anos. Mais de 80% eram meninas.
Nas duas estatísticas, enquadra-se um caso que chocou o país há exatos 50 anos: o da menina Araceli Cabrera Crespo, de oito anos. Ela desapareceu, foi estuprada e morta no Espírito Santo – a repercussão do crime deu origem ao Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, marcado nesta quinta-feira (18).
Os 50 anos do caso Araceli
No dia 18 de maio de 1973, a menina Araceli Cabrero Crespo, de oito anos, desapareceu após deixar a Escola São Pedro, na Praia do Suá, em Vitória, capital do Espírito Santo, para pegar um ônibus até sua casa. Ela foi raptada, estuprada, drogada e morta. Seis dias depois, o corpo da menina foi encontrado em uma mata, atrás do Hospital Infantil da cidade.
Três empresários de famílias influentes do Espírito Santo foram denunciados como autores do crime: Paulo Helal, Dante Brito Michelini e seu pai, Dante de Barros Michelini. Em 1980, os réus foram condenados, mas uma nova sentença em 1993 os absolveu e o processo foi arquivado.
A investigação do crime foi marcada por informações desencontradas, divergências entre pessoas que atuaram no inquérito e contradições em depoimentos. A história foi retratada no livro “O Caso Aracelli: Mistérios, Abusos e Impunidade”, dos jornalistas Felipe Quintino e Katilaine Chagas, lançado pela Alameda Editoral. Os autores tiveram acesso inédito ao processo judicial, de 12 mil páginas.
19,1% dos estupros no Brasil ocorrem entre crianças de 5 a 9 anos de idade, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022. O crime é um problema de infância no país
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Por causa da mobilização em torno do caso, a defesa dos direitos da criança e do adolescente começaram a ser mais debatidas no país. Na Constituição Federal de 1988, o artigo 277 diz que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, todos os direitos das crianças e adolescentes, e colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, violência e opressão.
Em 1990, foi publicado o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), um conjunto de normas jurídicas para proteção das crianças e adolescentes, considerado um marco dos direitos humanos. No ano 2000, a Lei 9.970 instituiu o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, em 18 de maio, para marcar o caso Araceli e realizar ações de conscientização ao problema da violência contra crianças.
Desde 2022, o mês de maio se transformou no Maio Laranja, com o intuito de estender ações de combate à violência sexual para todo o mês. Nesta quinta-feira (18), o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania vai anunciar, em cerimônia no Palácio do Planalto, novas ações, como a ampliação do Disque 100, principal canal de denúncias, e o lançamento do Programa Mapear, com o levantamento de pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes às margens das rodovias federais.
A violência contra crianças em números
Segundo o Anuário de Segurança Pública 2022, oito em cada 10 estupros no Brasil são cometidos por um conhecido da vítima. Outros tipos de agressão também estão dentro do núcleo familiar.
Dados do Disque 100, serviço do governo federal para a denúncia anônima de violações aos direitos humanos, divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, indicam que de janeiro a abril de 2023 o número de registros de abusos, exploração e estupros cresceu 68% em relação ao mesmo período de 2022: foram registradas mais de 17 mil violações sexuais,
- 9.500 denúncias de violência sexual foram realizadas via Disque 100 entre janeiro e abril de 2023. No mesmo período de 2022, 6.400 tinham sido registradas
Os principais tipos de violência sofrida pelas crianças e adolescentes são maus-tratos, insubsistência afetiva, exposição ao risco de saúde e tortura psíquica. De acordo com o Anuário de Segurança de 2022, entre 2020 e 2021, os índices de maus-tratos subiram de 29,8% para 36,1%.
Para Maria Beatriz Linhares, professora associada sênior do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP e membro do comitê científico do NCPI (Núcleo de Ciência Pela Infância), apesar do maior amparo em leis, a violência contra crianças no Brasil segue naturalizada.
“Ainda enfrentamos muita validação da violência, e dentro do ambiente familiar é muito preocupante. Não podemos achar que é normal dizer que os pais podem educar do jeito que querem, porque as consequências são intergeracionais. O ciclo da violência é perpetuado”, disse Linhares.
As ações de combate
De acordo com Linhares, é necessário quebrar o ciclo intergeracional da violência por meio de sensibilização com gestores públicos e campanhas que demonstrem o tema de forma transversal, além de inserir o assunto nos planos municipais de primeira infância.
Para a formulação dessas políticas e programas, a professora afirma que é necessário se apropriar dos dados estatísticos para entender a dimensão do problema, e ouvir especialistas e pesquisadores.
Em artigo publicado em março, Linhares defende a implementação de programas voltados à parentalidade como ferramenta para diminuir a ocorrência de violência. “Os pais muitas vezes fazem o que aprenderam em casa. Por isso é preciso trazer estratégias diferentes para que eles saibam como lidar com a criança”, disse .
O ambiente escolar, onde a revelação espontânea por parte das crianças e adolescentes pode ocorrer, também precisa seguir um fluxo correto para receber e encaminhar casos de violência, disse ao Nexo Rafael Teixeira, representante da Campanha Defenda-se, do Centro Marista de Defesa da Infância. O projeto promove a autodefesa de crianças por meio de vídeos educativos e de linguagem acessível, para que elas reconheçam os seus direitos.
“Falamos especificamente com as crianças: para que não aceitem presentes em troca de carinho ou carona, que saibam nomear as partes íntimas e os sentimentos que as deixam tristes ou desconfortáveis. E que elas acessem um adulto de confiança para falar sobre isso”, afirmou Teixeira.
Caso um educador seja escolhido pela criança como o adulto de confiança para receber a denúncia, ele deve:
Se mostrar disponível e ter uma postura de escuta
Não duvidar, nem fazer muitas perguntas ou agir de forma exagerada
Não prometer sigilo caso a criança peça, mas garantir que irá contar para pessoas que irão defendê-la
Anotar o que a criança disser com detalhes e encaminhar a denúncia para os órgãos responsáveis, com o conhecimento e orientação da direção da escola
Como denunciar violência e abusos
Segundo a líder do Programa Nossas Crianças da Fundação Abrinq, Michelly Antunes, qualquer suspeita de situação de violência deve ser denunciada – a instituição promove campanhas de conscientização como a Pode Ser Abuso, focada na prevenção da violência e exploração sexual.
De acordo com Antunes, há sinais de alerta que podem ser observados que indicam que crianças ou adolescentes podem estar em uma situação de violência:
A criança ou adolescente, que antes gostava de brincar e socializar, começa a ficar isolada
A perda do interesse em brinquedos e brincadeiras que gostava
A perda do apetite e do interesse por alimentos que gostava
“Precisamos sensibilizar as pessoas para que a gente tenha em mente que é responsabilidade da sociedade proteger crianças que sofrem violência. As consequências físicas e psicológicas do trauma podem perdurar para a vida toda”, disse.
Para denunciar violações de direitos das crianças e adolescentes:
É possível realizar uma denúncia no Disque 100 ou 190, além de acionar o Conselho Tutelar do município. Não é necessário comprovação do abuso: a suspeita já basta
Quando os sinais são percebidos na escola, no hospital ou outros locais, existe um fluxo estabelecido, com acionamento do Conselho Tutelar, do Judiciário, aplicação de medidas protetivas, atendimento de assistentes sociais e psicólogos
O Judiciário toma como primeira medida o afastamento do agressor. Se não for possível, a guarda é transferida para um familiar. Como última medida, os pais são destituídos do poder familiar e a criança encaminhada para acolhimento.
Fonte: NEXO
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