“Cuique Suum”
Com mais de três decadas da vigência da Lei Federal nº 8.069/90/Estatuto da Criança
e doAdolescente, apresentamos do ilustre Edson Sêda, um breve resgate, quando da virada do
milênio:
“(...)
No sistema de proteção integral a que se refere o artigo primeiro do
Estatuto, não há mais autoridades arbitrárias, inquisidoras, ditatoriais.
Daquilo que estava concentrado no juiz, uma parte agora é a livre
competência do Conselho Municipal de Direitos (que controla desvios e
omissões nas varias políticas públicas) e registra programas da política de
assistência social garantindo, nesta, o princípio da prioridade absoluta a
crianças e adolescentes com programas em regime jurídico de orientação e
apoio sócio-familiar, apoio sócio educativo em meio aberto, colocação
familiar, ¹abrigo, liberdade assistida e internação. Não há mais retaguarda
de nenhuma autoridade discricionária. Há programas de vanguarda
decididos, coordenados e controlados pelo Conselho Municipal. Há um
Fundo Municipal para propiciar que garantam o princípio da prioridade
absoluta a que se referem os artigos 227 da Constituição Federal e quarto
do Estatuto.
Outra parte do que era competência do juiz foi para o Conselho Tutelar.
Situações em que crianças e adolescentes são vítimas por violação de
direitos e em que crianças são vitimadoras de direitos alheios segundo o
Código penal (ver artigos 103 e 105 do Estatuto) não são mais apreciados
pelo juiz, mas sim, pelo conselho, que representa a sociedade em nível
administrativo (se houver conflito entre a decisão do Conselho e as pessoas
interessadas, como qualquer demanda, o caso pode ser levado para a
apreciação do novo Juiz da Infância e Juventude).
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Um erro flagrante que se encontra em muitos municípios é a percepção de
que o que antes era a retaguarda do juiz agora seria retaguarda do...
Conselho Tutelar. Quando isso ocorre é porque as pessoas não aprenderam
a passar da doutrina da situação irregular para o sistema da proteção
integral. O novo Conselho Tutelar não substitui o velho juiz em suas
arbitrariedades. Ele assume competências do antigo juiz para fazer coisas
novas que não eram feitas antes.
Essas coisas consistem em garantir que os problemas de crianças e
adolescentes sejam resolvidos junto à família e à comunidade em programas
em regime de orientação e apoio sócio-familiar, apoio sócio educativo em
meio aberto, colocação familiar, abrigo, liberdade assistida, semi-liberdade
e internação.
Nunca se pode admitir que conselheiros individualmente façam coisas que
são de assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, orientadores
educacionais, auxiliares administrativos, recreadores, advogados etc.
Quando os conselheiros fazem essas coisas , eles praticam o crime de
ursupação de função pública ou a contravenção de exercício ilegal de
profissão. E mais: essas coisas devem ser feitas livremente, sem precisar de
uma ordem ou uma determinação de Conselho Tutelar ou quem quer que
seja.
Assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, advogados etc são profissionais
que não dependem da ordem de ninguém (numa sociedade livre e
democrática) para exercer sua profissão. E os cidadãos (numa sociedade
livre e democrática) não dependem de ordem de nenhuma autoridade
discricionária para ter acesso para ter acesso aos préstimos de um
profissional. Trata-se, portanto, de grave desvio quando cidadãos comuns
ou autoridades querem que os programas de proteção só façam coisas,
quando determinadas pelo Conselho Tutelar. Isso é voltar ao velho sistema
burocrático, centralizador, autoritário, dizendo que se está praticando o
novo.
Para que tenhamos um sistema de proteção integral, as famílias, as escolas,
as ONGs em seus bairros devem ser dotados de acesso a programas do
Artigo 90 do Estatuto em regime de: 1. orientação e apoio sócio-familiar; 2.
apoio sócio-educativo em meio aberto; 3. colocação familiar; 4. abrigo
(para crianças e adolescentes que eventualmente se vejam como vítimas nos
mais variados níveis de vitimação). E acesso aos programas em regime de
liberdade assistida; 2. semi-liberdade e 3. internação (para cumprir
sentenças de reparação do dano, prestação de serviço à comunidade,
liberdade assistida, semi-liberdade ou internação, a adolescentes que hajam
sido declarados infratores pelo juiz e devam ser punidos com medidas
chamadas de sócio-educativas por haverem violado a Lei Criminal
brasileira fazendo vítimas).
Resumindo: quando vítimas, crianças e adolescentes devem ser protegidos
em programas de proteção ofertados às comunidades e às famílias,
programas esses aprovados e coordenados no Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do Adolescente (conselho que congrega metade de
membros da Prefeitura e metade dos membros representando ONGs da
sociedade civil). Se violados no direito de livre acesso a esses programas, se
pode ir ao Conselho Tutelar que, apreciando o conflito assim gerado, pode
determinar que um programa atenda à criança e ao adolescente ameaçado
ou violado em seus direitos. Ao Conselho Tutelar se vai, não quando se
precisa de um serviço (a ser prestado por programas à disposição da
população em política pública), mas quando direitos foram ameaçados ou
violados. Entre esses direitos, o livre acesso aos serviços dos programas que
propiciam atenção por profissional especializado.
Quando vitimadoras, crianças serão submetidas a medidas de proteção,
cumpridas por programas de proteção, aplicadas (nunca executadas) pelo
Conselho Tutelar. Quando vitimadores, os adolescentes serão julgados pelo
Juiz da Infância, garantindo pleno direito de defesa do acusado. Se culpados
dos atos que lhe são imputados (que lhes são atribuídos) pelo Promotor da
Infância e da Juventude (depois da correta investigação pela Polícia Civil),
o juiz aplicará medidas de: 1. reparação do dano; 2. prestação de serviço à
comunidade; 3. liberdade assistida; 4. semi-liberdade; 5. Internação (art.
112) que serão cumpridas em programas de regime de: 1. liberdade
assistida; 2. semi-liberdade; 3. Internação (Artigo 90).
Verifica-se por aí que a reparação do dano e a prestação de serviços à
comunidade podem ser cumpridas em regime de liberdade assistida, semiliberdade ou internação. Logicamente, a liberdade assistida só pode ser
cumprida em regime de liberdade assistida, a semi-liberdade em regime de
semi-liberdade e a internação em regime de internação. Ou seja, no sistema
da proteção integral (quer dizer: proteção de todos, por todas as formas
possíveis, em todos os momentos possíveis) não há espaço para
impunidades, mas também não pode haver espaço para arbitrariedades,
burocratismos ou desvios de função.
A proteção integral depende de constante acompanhamento da sociedade
através de seus dois grandes conselhos de Estado em nível municipal:
Conselhos de Direitos para questões de direitos difusos (direitos difusamente
reconhecidos sem que se possam identificar imediatamente seus
beneficiários) e Conselho Tutelar para questões de direitos individuais,
direitos esses que devem ter sempre à sua disposição os programas de
proteção para que não seja necessário ir a uma autoridade (como o
Conselho Tutelar) para burocraticamente se ter o direito de gozar de seus
benefícios.
Evidentemente há muitos outros aspectos da virada do milênio introduzida
pelo Estatuto que não podemos tratar aqui por limitações de espaço. Que
fique ao menos a idéia de que a nova Era ou nos estimula a mudarmos nossas
percepções, nossa vontade pública, nosso padrão cotidiano de agir, ou não
teremos saído do século XX. E não saindo, regredíramos para muito antes
do século XX, contaminados pelo lado sombrio da natureza humana que
todos os dias nos põe, pela televisão, pelo rádio, pelos jornais, pela internet
em contacto conosco mesmos, travestidos de trogloditas, através das
práticas da violência, da arbitrariedade, da exclusão social.
Está ao nosso alcance mudar a percepção e entrar no século XXI. Nele estão
o cidadão criança e o cidadão adolescente.” (In verbis)
(Dez anos de Cidadania – Cadernos Caminho para a
Cidadania/2001-Editora UFMS/ Série Escola de Conselhos. pp.34-
36/Edson Sêda) ¹(A terminologia “abrigo” no texto acima, decorre da legislação em
vigência a época da publicação do mesmo. Só com o advento vigência da Lei Federal nº
12.010/2009, a terminologia abrigo foi substituída por “Acolhimento Institucional.”)
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Neste ano, em que comemoraremos trinta e três anos da aprovação da Lei Federal nº
8.069/90 -Estatuto da Criança e do Adolescente. Legislação que trouxe o reconhecimento das
crianças e dos adolescentes como sujeitos de direitos. Entendemos que a importância do
Estatuto deriva exatamente disso: reafirmar a proteção de pessoas que vivem em períodos de
intenso desenvolvimento psicológico, físico, moral e social.
Portanto, o Estatuto veio para colocar a Constituição em prática (artigo de nº 227).
Essa prática, conforme nossa Lei Maior, dá-se pelo Estado, por meio da promoção de
programas de assistência integral e com absoluta prioridade aos direitos de crianças e
adolescente, sendo também admitida a participação de entidades não governamentais,
mediante políticas específicas.
Neste diapasão da participação popular, a lei criou importante espaço de intervenção,
denominado Conselho Tutelar; infelizmente ainda hoje, mesmo que já decorridos 32 anos da
aprovação da Lei, quando falamos do Conselho Tutelar, nos deparamos com uma insistente
série de equívocos quanto ao entendimento natureza jurídica do órgão -“autônomo”- e as
atribuições que lhe conferiu o legislador federal.
Neste contexto, muito bem esclarece Geraldo Nóbrega em seu artigo: Conselho
Tutelar : um braço forte da sociedade – Edição: Instituto Brasileiro Pró-Cidadania/PE, 2015.
“(...)Os Conselhos Tutelares existem somente no Brasil, essa
instituição pública assume vital importância para o cumprimento não
apenas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) mas também
da Constituição Federal de 1988, como mostra citação abaixo de
Paulo César Maia Porto na obra Sistema de Garantia de Direitos,
organizada pelo Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação
Social - CENDHEC.
“Os Conselhos Tutelares são talvez a mais ousada e polêmica
disposição do Estatuto para garantir a defesa dos direitos das
crianças e adolescentes. Escolhidos pela própria comunidade,
conforme o Art. 131, os conselheiros ajudam a concretizar a
responsabilidade que o Estatuto exige da sociedade em relação à
proteção integral de crianças e adolescentes.” (Porto, 1999)
O Conselho Tutelar ocupa uma função de destaque no Sistema de
Garantias de Direito, o órgão possui a capacidade de determinar
condutas aos pais/responsáveis, de fazer requisição aos órgãos e
serviços públicos de execução, além de peticionar à autoridade
judiciária e ao Ministério Público solicitando de juízes e promotores
providências no sentido de que os direitos de crianças e adolescentes
sejam assegurados, como também assim se expressa Paulo César
Maia Porto.
“Embora seja um órgão da administração pública municipal, não há
nenhum órgão hierarquicamente superior ao Conselho Tutelar. Ou seja, ele
tem o poder de decisão em última instância. Só o judiciário pode rever
decisões do Conselho, se as considerar ilegais (Art. 137). No âmbito do
Poder Público, nenhum outro órgão detém poderes sobre o Conselho Tutelar,
agindo este livremente: mas dentro da lei, a decisão cabe unicamente ao
Conselho.” (Porto, 1999).
[...] Antônio Cezar Lima da Fonseca, em sua obra Direito da Criança e do
Adolescente, reforça essa premissa, conforme citação abaixo:
o Art. 131 do ECA define o Conselho Tutelar e ao mesmo tempo dá as suas
três principais características: é um órgão (1) administrativo (2),
permanente e autônomo (3). É órgão: permanente, porque desenvolve uma
ação contínua e ininterrupta, não podendo ser extinto ou ignorado, ou ter
suas funções suspensas, uma vez que as situações que envolvam crianças e
adolescentes não tem dia certo para se manifestar, e as soluções devem ser
imediatas; autônomo, porque independente do exercício das atribuições
confiadas pelo Estatuto, é livre para decidir diante do caso concreto,
mediante decisões de caráter administrativo, que só podem ser modificadas
por decisões judiciais.” (Fonseca, 2012)
Resumindo, dentro dos princípios constitucionais e do ECA,
anteriormente discutidos, o Conselho Tutelar pode ser denominado
como o principal zelador dos Direitos estabelecidos através do
Estatuto da Criança e do Adolescente. É um hábito as pessoas e
instituições associarem novas funções a outras existentes ou extintas,
o Conselho Tutelar não fica de fora disso, talvez, por ter sido criado
recentemente o órgão seja a maior vítima deste fenômeno. Diversos
atores, togados e doutos, e principalmente a sociedade, confundem o
papel do Conselho Tutelar com o dos outros, exigindo do órgão papeis
que não condizem com a legislação. Como por exemplo, o Conselho
Tutelar não se equipara ao papel de cuidador/guardião de criança ou
adolescente, pois esta tarefa é natural dos pais/responsáveis, pela
chamada obrigação inerente ao Poder Familiar, e na falta deste ou
impedimentos, dos órgãos de execução, encarregados pela política de
proteção e acolhimento. Todavia, se existem autoridades e instituições
que exigem do Conselho Tutelar o que não é de direito, por outro lado
há também conselheiros tutelares que por desconhecimento ou por
interesse próprio usurpam a função pública, confundindo ainda mais
a sociedade e esses atores sobre o real papel do Conselho Tutelar.
Buscando organizar esclarecer melhor os papéis na promoção e
defesa dos direitos de crianças e adolescentes, o Conselho Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) resolve
aprovar a Resolução de nº 113, de 19/04/2006, dando assim
parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do Sistema
de Garanta dos Direitos da Criança e do Adolescente, como
mostramos abaixo:
“Art. 10º - Os conselhos tutelares são órgãos contenciosos nãojurisdicionais, encarregados de "zelar pelo cumprimento dos direitos da
criança e do adolescente", particularmente através
da aplicação de medidas especiais de proteção a crianças e adolescentes
com direitos ameaçados ou violados e através da aplicação de medidas
especiais a pais ou responsáveis (art. 136, I e II da Lei 8.069/1990).
Parágrafo Único. Os conselhos tutelares não são entidades, programas ou
serviços de proteção, previstos nos arts. 87, inciso III a V, 90 e 118, §1º, do
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Art. 17 - Os serviços e programas de execução de medidas específicas de
proteção de direitos humanos têm caráter de atendimento inicial, integrado
e emergencial, desenvolvendo ações que visem prevenir a ocorrência de
ameaças e violações dos direitos humanos de crianças e adolescentes e
atender às vítimas imediatamente após a ocorrências dessas ameaças e
violações.
§ 1º Esses programas e serviços ficam à disposição dos órgãos competentes
do Poder Judiciário e dos conselhos tutelares,para a execução
de medidas especificas de proteção, previstas no Estatuto da Criança e do
Adolescente: podendo, todavis receber diretamente crianças e adolescentes,
em caráterexcepcional e de urgência, sem previa determinação da autoridade
competente, fazendo, porém a devida comunicação do fato a essa autoridade,
até o segundo dia útil imediato, na forma da lei citada.” (grifo nosso)
Edson Sêda também discorre acertadamente sobre o papel do Conselho
Tutelar e aos equívocos ocorridossobre a prática funcionaldo órgão:
(...) a maior confusão tem sido praticada pelos que querem que o Conselho
Tutelar execute ações protetivas, ou seja, ações de proteção, que são
exclusiva dos órgãos de execução. Prefeituras e entidades nãogovernamentais executam. Conselho Tutelar controla, determinando e
requisitando o que deveria ser feito.” (Sêda, 2007).”
Neste contexto, destacamos a citação de Pedro Demo, na obra: Participação é
conquista. Editora São Paulo;Brasiliense, 1998, em que assevera: “A participação não é
dada, é criada, não é dádiva é reinvidicação. Não é concessão, é sobrevivência. A
participação precisa ser construída, forçada, refeita e recriada.”
Partindo das contribuições de Pedro Demo, podemos concluir que a capacidade de
partilhar o poder de decisão é uma conquista. Nesta perspectiva, o processo tende a ser lento
e conflituoso. É um exercício cotidiano de decisão não muito fácil. Trata-se de definir quem
faz o quê na sociedade. Ou seja, um exercício de poder conjunto com divisão de
responsabilidades tanto nas decisões tomadas, quanto nas ações executadas e nos resultados
obtidos, sempre – repito – sempre, amparado pela LEI .
A prática de conselho, de caráter coletivo e emancipatório, está na sua capacidade de
assimilar os novos conceitos das estruturas modernas da sociedade.
Nesta perspectiva, torna-se condição para cada conselheiro, alargar os horizontes, olhar
para mais longe, captar novas formas de apreensão do movimento da realidade; ou seja,
desenvolver a capacidade de decifrar os limites e as possibilidades que a prática cotidiana lhe
impõe, e construir proposta de ações criativas capazes de efetivar direitos.
O desafio está na mudança de pensamentos e práticas dos conselheiros. É preciso
redimensionar as práticas coletivas, valorizando as experiências já vividas. Nessa caminhada
é que os iguais descobrem suas diferenças e os diferentes encontram sua igualdade,
distanciando-se da unidade arbitrária.
O mais importante é continuar insistindo nesta caminhada, sem perder a perspectiva
de mudanças em direção a uma sociedade democrática que motive as lutas coletivas, na busca
de colocarmos em prática a legislação, e celebramos, tornando real e concreto a doutrina da
proteção integral e a prioridade absoluta na garantia da efetivação dos direitos humanos de
nossas crianças e adolescentes.
Neste diapasão, reforçamos o convite para nos dias 02,03 e 04 de março próximo, nos
encontrarmos na bela cidade de Pureza/RN, quanto da realização do Encontro de Formação
para os Integrantes da Rede de Atendimento ao Direitos de Crianças e Adolescentes.
Sejam bem vindos(as).
George Luís Bonifácio de Sousa
Instrutor na área do Direito da Criança e do Adolescente.
Contato: 84 999985873
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