quarta-feira, 27 de julho de 2022

Conselho Tutelar denunciou médica por aborto legal em menina de 14 anos.


A busca de uma adolescente de 14 anos para obter um aborto legal terminou com a abertura de uma investigação contra a médica que a atendeu em um hospital de referência para violência sexual em São Paulo. As suspeitas foram levadas à polícia por intervenção do Conselho Tutelar, responsável pela proteção da menina, sem que houvesse investigação sobre a violência narrada por ela.

Após descobrir que estava grávida, ainda nas primeiras semanas da gestação, a garota foi com os pais ao Conselho Tutelar de São José dos Campos (SP). O pedido era para interromper a gravidez, após ela contar ter sido enganada para manter relações sexuais sem proteção.

Em vez dos cuidados para vítimas de violência sexual, ela foi encaminhada a seguir com os exames pré-natal em uma Unidade Básica de Saúde. A família da adolescente insistiu em interromper a gestação e conseguiu fazer o aborto em um serviço de referência na capital paulista, autorizado pelo Ministério da Saúde para esse tipo de intervenção.

A equipe multidisciplinar do hospital entendeu se tratar de um caso análogo ao de violação mediante fraude, por isso notificou novamente o Conselho Tutelar, para que fossem tomadas providências. O órgão, no entanto, acionou o Ministério Público de São Paulo (MPSP) para que a médica que prestou o atendimento fosse investigada pelo crime de aborto – e não deu início à apuração sobre a violência narrada pela adolescente.

Por ordem do MPSP, foi então instaurado inquérito policial para apurar se ocorreu crime de abortamento com consentimento da gestante – presente no artigo 126 do Código Penal, que prevê pena de prisão entre um e quatro anos.

No Brasil, não há crime de aborto quando: não há outro modo de assegurar a vida da gestante; se a gravidez é resultado de um estupro; ou caso o feto é anencéfalo, segundo entendeu o Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012. Nesses casos, se fala em aborto legal, que deve ser assegurado pelo sistema público de saúde.

A investigação começou em novembro passado, seis meses após o procedimento. A partir de então, a médica precisou iniciar uma briga na Justiça para que o inquérito contra ela fosse fechado, por quebra do sigilo profissional por parte do Conselho Tutelar e desrespeito à preservação da identidade de uma adolescente.

A Resolução nº 170 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) prevê, especificamente no seu artigo 36,  a preservação da identidade da criança ou adolescente atendido pelo Conselho Tutelar.

Na época, a delegacia do 40º Distrito Policial Vila Santa Maria enviou ofício ao hospital municipal onde foi realizado o atendimento, localizado na Zona Norte de São Paulo. A ordem era para apresentar o médico que fez o aborto legal (chamado no inquérito policial de “parto”), a ficha de atendimento da adolescente e cópia do prontuário médico.

A chefe do serviço do atendimento a vítimas de violência sexual do hospital entrou em contato com a delegacia e foi informada que se comparecesse para prestar esclarecimentos sobre o ambulatório liderado por ela, seria na condição de investigada.

A médica então pediu um habeas corpus contra a investigação, negado por juíza da 2ª Vara do Tribunal do Júri de São Paulo, que entendeu não ter existido violação de sigilo profissional ou ilegalidade no compartilhamento de informações pelo Conselho Tutelar.

Em junho, a 16ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) reverteu a decisão e ordenou o trancamento do inquérito. No processo, inicialmente, o MPSP havia se manifestado pelo prosseguimento da investigação; mas depois da decisão desistiu de recorrer.

A quebra de sigilo profissional deveria ocorrer apenas quando houver justa causa, defendeu o relator, desembargador Camargo Aranha Filho. “Em se tratando de casos e atendimentos realizados pelos Conselhos Tutelares, que visam à proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes, a configuração da justa causa deve observar o direito à dignidade e respeito dos menores de idade”, afirmou.

Quando entendeu se tratar de um caso de violência sexual, o próprio hospital comunicou o Conselho Tutelar para providências sobre o delito, mas, em vez disso, “o órgão colocou em dúvida um procedimento médico realizado por equipe multidisciplinar especializada, sob o qual não pende suspeita de irregularidade”, como pontuou o magistrado.

“A comunicação efetuada pelo Conselho Tutelar não só não teve objetivo de apurar delito praticado como teve por consequência o início de investigação que poderá responsabilizar a própria adolescente pela prática de ato infracional análogo a consentimento para abortar”, continuou.

Nesse sentido, o compartilhamento dos documentos médicos, bem como a violação do sigilo profissional e do dever de preservação da identidade da adolescente, somente deveria acontecer para apurar o caso de violência sexual, e não a realização do aborto.

“O compartilhamento, pelo Conselho Tutelar, da documentação relativa ao atendimento da adolescente com o Ministério Público, sem justa causa, contraria todo o sistema de proteção à criança e ao adolescente, configurando, portanto, quebra do dever de sigilo profissional”, disse Aranha. Como o inquérito foi baseado nessa quebra, não há razão para que ele continue.

Quando se trata de violência sexual contra adolescentes, o Código Penal prevê como estupro de vulnerável qualquer ato sexual com menos de 14 anos. A partir do momento em que se completa essa idade, não há mais presunção de violência e passa a valer a regra mais ampla, pela qual estupro é definido como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” – como consta no artigo 213 do Código Penal. Se a vítima tem entre 14 e 18 anos, a pena é aumentada.

Há ainda a situação de violação sexual mediante fraude, em que há relação sexual por meio de algum falseamento ou “outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”.

A adolescente de São José dos Campos relatou à equipe de psicólogas e assistentes sociais do hospital que se relacionava com outro jovem, de 15 anos, há cerca de um ano e meio. Com ele, iniciara a vida sexual, com o estrito acordo sobre o uso de preservativo em todas as relações. Quando notou atraso na menstruação, fez um teste de farmácia que apontou a gravidez.

Ela confrontou o rapaz, que admitiu ter violado o compromisso sobre o uso da camisinha sem avisá-la. A adolescente contou ter se sentido enganada pela “pessoa em quem mais confiava”. Os profissionais concordaram que a situação havia ferido a liberdade e dignidade sexual dela, por isso atenderam ao desejo pela interrupção da gravidez.

Além disso, a equipe multidisciplinar constatou que a retirada da camisinha se tratou de um caso com características de violação sexual mediante fraude. Hoje, todos os crimes contra a dignidade sexual estão amparados pelo aborto legal, segundo orientação do Ministério da Saúde.

“O Conselho Tutelar se deu um poder que não tem. Ao mesmo tempo, o caso passou pelo MPSP sem qualquer sigilo para resguardar a adolescente. Foi preciso que a situação chegasse à segunda instância do Tribunal para parar a situação, completamente ilegal”, diz a advogada Vitoria Buzzi, que representou a médica e estava pronta para levar o habeas corpus ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) se houvesse negativa no TJSP.

“É evidente que os pais dessa adolescente não agiram de má-fé. Eram apenas pessoas em busca de escuta qualificada para entender os direitos da filha”, aponta Buzzi. Ela faz parte do Projeto Cravinas, Clínica de Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Reprodutivos da Universidade de Brasília, que atuou no caso. Essa foi a primeira vez que elas atuaram em um caso de investigação contra profissionais de saúde pela realização de aborto amparado em lei.

Como relatado no processo, a família só soube da possibilidade de buscar ajuda em um serviço de atendimento a vítimas de violência sexual por meio da iniciativa e da ONG Milhas pela Vida das Mulheres.

Violência sexual, stealthing e aborto legal
A prática em que um dos parceiros remove propositalmente o preservativo sem o consentimento do outro é chamado de “stealthing”, no termo em inglês. Em alguns países, já há legislação específica para tratar dessa conduta como agressão sexual – uma das mais recentes é a lei aprovada no ano passado na Califórnia (EUA).

No Brasil, não há lei tratando especificamente do stealthing, por isso o mais comum é a aplicação da noção de estupro mediante fraude. Há decisões nesse sentido no país. Em 2020, a 7ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) permitiu uma interrupção da gestação que foi resultado dessa atitude. Na época, a mulher não havia conseguido atendimento, antes de recorrer ao Judiciário, porque o início da relação fora consentido, então não haveria como falar em estupro.

Os desembargadores entenderam que, mesmo se a relação começou sob consentimento, a partir do momento em que ele deixa de existir, o ato passa a ser considerado estupro – neste caso, a mulher percebeu imediatamente a remoção do preservativo, mas foi forçada a continuar.

Sob essa mesma lógica, tramita o Projeto de Lei 965/2022 para tipificar no Código Penal o stealthing, entendido como o ato de remover propositalmente o preservativo durante o ato sexual ou deixar de colocá-lo sem consentimento. A proposta precisa ser analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados antes de ir a Plenário.

No atendimento por violência sexual e para aborto legal, não é responsabilidade da equipe médica julgar se o caso relatado é verídico ou em qual artigo do Código Penal ele estaria enquadrado. Não é necessário também apresentar boletim de ocorrência. Nessas situações, basta a palavra da pessoa gestante e a avaliação do time multidisciplinar.

Antes de seguir com a interrupção da gravidez, se a mulher assim desejar, é necessário assinar termo de consentimento e declaração de que as informações prestadas são verdadeiras, sob pena de responder judicialmente por fraude.

Caso seja constatado, posteriormente, que houve fraude ou que o caso não poderia ser enquadrado como estupro, os profissionais não podem ser responsabilizados, conforme consta em nota técnica de 2005 sobre abortamento legal do Ministério da Saúde.

Na mesma época em que o habeas corpus da médica era decidido, o Ministério da Saúde divulgou cartilha com informações distorcidas e que negava a possibilidade de aborto legal no Brasil. O documento foi alvo de críticas de entidades médicas e organizações da sociedade civil nas últimas semanas.

Entre os pontos de maior preocupação está a afirmação de que os abortos em caso de estupro só não seriam crime se realizados até a 22ª semana de gestação. Após este período, médicos poderiam ser alvo de investigação, sugere a instrução.

Apesar da noção de que esse tipo de documento não supera a previsão do Código Penal, as novas normas jogam pressão sobre os médicos que atuam em serviços de referência para o aborto legal. Hoje, já é comum que eles demandem autorização judicial para os atendimentos além das 22 semanas, por exemplo.

“Os médicos lidam com insegurança jurídica, então muitos preferem ter uma decisão judicial do lado deles. O objetivo desse tipo de orientação sobre crime é causar insegurança e medo nos profissionais que atuam”, diz o obstetra Cristião Rosas, presidente da Rede Médicos pelo Direito de Decidir.

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Apoio Social ao Cidadão da Prefeitura de São José dos Campos, responsável pelo Conselho Tutelar no município, não comentou o caso. O motivo seria que há três unidades do Conselho, com atuação independente. O espaço segue aberto.

Fonte: JOTA Info

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