sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Conselho Tutelar pode afastar criança/adolescente do convívio familiar?

 

Pergunta:
Considerando o disposto no artigo 101 § 2º, do ECA, gostaria de indagar aos colegas sobre a ação a ser ajuizada para ratificar a medida protetiva de acolhimento aplicada pelo Conselho Tutelar?

(Medida cautelar, ação de afastamento, representação administrativa com pedido de acolhimento)

Resposta:
Antes de mais nada, é importante nunca perder de vista que o Conselho Tutelar NÃO TEM ATRIBUIÇÃO PARA PROMOVER O AFASTAMENTO DE CRIANÇA/ ADOLESCENTE DO CONVÍVIO FAMILIAR, providência extrema/ excepcional que é de competência EXCLUSIVA da AUTORIDADE JUDICIÁRIA (art. 101, §2º, do ECA).

Na forma da lei, o Conselho Tutelar somente pode efetuar o "acolhimento" de criança/ adolescente quando este é utilizado como medida "isolada", ou seja, sem o prévio "afastamento do convívio familiar" (no caso, por exemplo, de crianças "expostas", que se encontrem perdidas e/ou cujo paradeiro dos pais/ responsável for desconhecido). A lei é clara em determinar que, quando o Conselho Tutelar (e assim deve ser entendido o "COLEGIADO" que compõe o órgão, e não um Conselheiro agindo de forma isolada, num "plantão/ sobreaviso", por exemplo) entender que é caso de afastamento de criança/ adolescente do convívio familiar, deverá comunicar o fato "incontinenti ao Ministério Público, prestando-lhe informações sobre os motivos de tal entendimento e as providências tomadas para a orientação, o apoio e a promoção social da família", justamente para evitar tal solução extrema (art. 136, par. único, do ECA). Veja que o próprio art. 101, §2º, do ECA faz referência apenas a uma única hipótese que justificaria o afastamento "sumário" de criança/ adolescente da companhia de seus pais/ responsável legal, sem a prévia intervenção da autoridade judiciária: quando da ocorrência de flagrante de violência ou abuso sexual (sendo certo que, neste caso, qualquer cidadão - mesmo sem ser membro do Conselho Tutelar pode retirar a criança/ adolescente daquele meio e a levar para um local seguro, dando inclusive "voz de prisão" ao agressor/ abusador), o que, logicamente, não dispensa o ajuizamento de demanda judicial imediatamente na sequência, ocasião em que, preferencialmente, também na forma da lei, deve-se verificar da possibilidade de afastamento DO AGRESSOR da moradia comum (art. 130, do ECA), que terá sempre preferência em relação ao afastamento da criança/ adolescente vítima (especialmente quando isto ocorre contra sua vontade manifesta - e tanto na forma do ECA - art. 100, par. único, incisos I e XII - quanto da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança - art. 12 - esta tem o direito de ser ouvida e se manifestar sobre os assuntos de seu interesse sempre que tenha condições de exprimir sua vontade).

Embora ainda bastante comum (infelizmente), a simples "homologação" de um "acolhimento" precedido de "afastamento do convívio familiar" promovido pelo Conselho Tutelar é MANIFESTAMENTE ILEGAL, assim como a instauração daqueles famigerados "pedidos de providência", "procedimentos verificatórios" e/ou "procedimentos para aplicação de medidas de proteção" (que muitas vezes "entopem" as Varas da Infância e Juventude sem qualquer justificativa e/ou propósito), tristes resquícios do revogado "Código de Menores" e que, por força do disposto de maneira expressa no art. 153, par. único, do ECA, NÃO PODEM ser utilizados em tais casos.

Na verdade, se tomarmos por base o disposto nos arts. 152, caput c/c 212, do ECA, a rigor QUALQUER ação de cunho "CONTENCIOSO", que preencha os requisitos e pressupostos processuais, condições da ação etc. e permita o exercício do contraditório e ampla defesa por parte daos pais/ responsável, pode ser usada para determinar o afastamento de criança/ adolescente do convívio familiar (não basta mandar "citar" os pais/ responsável para responder aos termos de um ofício encaminhado pelo Conselho Tutelar "comunicando" o afastamento, "homologado" em sede de "procedimento verificatório" ou similar) e, logicamente, para que possamos ter os elementos mínimos de convicção necessários para sua propositura (até mesmo para saber se o pretendido afastamento, DE FATO se justifica e/ou atende aos interesses da criança - e que por ser uma medida extrema que, a princípio, VIOLA o regular exercício do direito à convivência familiar, assim como PRINCÍPIO expressamente relacionado no art. 100, par. único, inciso X, do ECA, deve ser o quanto possível EVITADA), devemos acionar a "rede de proteção" à criança e ao adolescente local (e os órgãos técnicos que a compõem), nos moldes do previsto no art. 70-A, inciso VI, do ECA. A propósito, importante não perder de vista que o Conselho Tutelar NÃO É um órgão "técnico" e a orientação que sempre damos aos colegas é para que JAMAIS tomem qualquer providência "drástica" e que, potencialmente, pode se mostrar ALTAMENTE PREJUDICIAL à criança/ adolescente (o afastamento do convívio familiar, ao menos sob a ótica da criança/ adolescente que será atingida pela medida pode ser muito mais grave, prejudicial e traumático que a alegada violação de direitos que o originou) com base em singela informação ou "relatório" do Conselho Tutelar (desnecessário dizer que, não é porque o Conselho Tutelar - ou o "Conselheiro de plantão" -, agindo de forma ARBITRÁRIA, promoveu o afastamento de uma criança/ adolescente do convívio familiar e seu subsequente acolhimento que nós somos "obrigados" a "referendar" tal iniciativa, sendo certo que o próprio art. 93, par. único do ECA, em cumprimento ao contido nos arts. 19, §3º e 100, caput e par. único, inciso X, do mesmo Diploma prevê, de maneira expressa, que mesmo em tais casos, a "providência primeira" a ser tentada é, justamente, a REINTEGRAÇÃO FAMILIAR, não por acaso também relacionada no art. 101, do ECA com a "primeira" das "medidas de proteção" passíveis de serem aplicadas).

A sugestão, inclusive, é criar um "fluxo" através do qual o Conselho Tutelar, ANTES de pensar em tomar qualquer decisão desse porte e/ou acionar o Ministério Público, SEMPRE acione os órgãos técnicos que compõem a "rede de proteção" à criança e ao adolescente local (que também deverá se organizar para funcionar em regime de "plantão" ou "sobreaviso" no período noturno e finais de semana - até porque as situações de violação de direitos infanto-juvenis não têm hora para ocorrer - e ocorrem com mais frequência em tais períodos), de modo a colher os subsídios necessários (incluindo a "escuta qualificada" da criança/ adolescente) tanto para decisão do colegiado acerca das providências a serem tomadas no caso em concreto (valendo lembrar que, em matéria de infância e juventude, não existe "matemática", e quão mais complexa for a situação, mais cauteloso e criterioso tem que ser o seu "diagnóstico"), quanto, caso se entenda que, de fato, a hipótese reclama o afastamento da criança/ adolescente vítima ou do agressor/ vitimizador, para que o Ministério Público receba os elementos/ subsídios mínimos necessários para promover a demanda judicial respectiva.

Vale dizer que tal sistemática, instituída, sobretudo, pela Lei nº 12.010/2009, sem dúvida tornou mais "difícil" o afastamento da criança/ adolescente do convívio familiar, tendo por objetivo precípuo justamente isso: evitar a "banalização" do afastamento do convívio familiar (e subsequente acolhimento institucional), que em boa parte dos casos ocorre por meio da intervenção precipitada/ açodada (e indevida/ arbitrária) do Conselho Tutelar (pior: do "Conselheiro de plantão", sem qualquer avaliação/ critério técnico e sem levar em conta a opinião da criança/ adolescente que será atingida - e por vezes duramente atingida - pela medida). Se você analisar com atenção, verá que, na forma da lei, é (ou ao menos deveria ser) mais "fácil" promover o afastamento cautelar do (suposto) agressor/ vitimizador do que o afastamento da criança/ adolescente do convívio familiar, ou ao menos se exige a mesma cautela e os mesmos elementos (técnicos) num e noutro caso (como eu costumo dizer, se você não tem elementos/ subsídios suficientes para ingressar com uma ação destinada ao afastamento do agressor, então você também não tem elementos/ subsídios suficientes para promover o afastamento da criança/ adolescente do convívio familiar - e nem preciso mencionar que, ingressar com uma demanda judicial em tais condições é, para dizer o menos, uma temeridade - para não usar o termo "irresponsabilidade").

Em matéria de infância e juventude, aliás, não podemos confundir a necessidade de agir com "rapidez", com a concessão (especialmente ao Conselho Tutelar) de uma espécie de "carta branca" para que sejam tomadas decisões "precipitadas/ açodadas", que como dito acima, podem trazer sérios e talvez irreversíveis prejuízos às crianças/ adolescentes indevidamente afastadas do convívio familiar.

Assim sendo, como dito acima, deve ficar claro, desde sempre, que o Conselho Tutelar NÃO TEM ATRIBUIÇÃO PARA PROMOVER O AFASTAMENTO DE CRIANÇA/ ADOLESCENTE DO CONVÍVIO FAMILIAR (devendo-se, inclusive, encaminhar recomendação ao órgão neste sentido, para que tal prática, se estiver ocorrendo, CESSE DE IMEDIATO), até porque, em relação à família, a "medida" mais grave que o órgão pode aplicar é a ADVERTÊNCIA (art. 136, inciso II c/c art. 129, inciso VII, do ECA), sendo certo que não foi para isto que o órgão foi criado, até porque, por imposição legal/ constitucional, tem ele o "dever" institucional de proteger TAMBÉM a família, e suas abordagens intervenções, por princípio, como dito acima, devem ser efetuadas no sentido de fazer com que os pais assumam suas responsabilidades em relação a seus filhos e da manutenção (prioritária) destes na companhia daqueles (art. 100, caput e par. único, incisos IX e X, do ECA), sobretudo quando a própria criança/ adolescente manifesta afeto por sua família e não quer ser dela separada...

Você verá que, a partir do momento em que o Conselho Tutelar (finalmente) compreender que não é e não pode agir como "carrocinha de criança", até porque não lhe é lícito a tomada de tal "medida" (que, por sinal, sequer se encontra no "rol" do art. 101, do ECA - especialmente nos incisos I a VII, deste dispositivo, cuja aplicação se encontra na esfera de atribuições do órgão), devendo "focar" sua atuação nas questões coletivas, na busca de melhorias na estrutura de atendimento também às FAMÍLIAS, a demanda pelo afastamento do convívio familiar e subsequente acolhimento institucional irá diminuir drasticamente.

E se, somado a isto, a "rede" passar a agir com maior independência, organização, planejamento, qualificação técnica/ profissionalismo - e responsabilidade, a própria demanda para as Varas e Promotorias da Infância e Juventude também será enormemente reduzida, até porque, na forma da própria lei, a "desjudicialização" do atendimento deveria ser a "tônica", e medidas extremas/ de "força" como o afastamento da criança/ adolescente do convívio familiar deveriam ser a exceção, da exceção, da exceção...

É por estas e outras que, recentemente, o CAOPCAE/PR encaminhou aos colegas um expediente REAFIRMANDO a importância de investimos na formação da "rede de proteção" em âmbito municipal (Of. nº 018/2016 - 16/02/2016 - Formação da Rede de Proteção), em cumprimento, inclusive, ao expressamente contido no citado art. 70-A, do ECA, que de forma clara prevê a criação de "espaços intersetoriais locais" para o debate/ descoberta da melhor solução para os problemas "estruturais" e para os casos de ameaça/ violação de direitos infant-juvenis que surgirem, procurando sempre atender aos princípios relacionados no art. 100, caput e par. único, do ECA, o que inclui os relativos à "intervenção precoce", "responsabilidade parental", "prevalência da família", "intervenção mínima" e "oitiva obrigatória e participação".

Vale mencionar, a propósito, que a Lei nº 13.010/2014 (também chamada de "Lei Menino Bernardo" - antiga "Lei da Palmada"), que determinou a inclusão deste dispositivo no ECA, apesar de ter por objetivo coibir a violência contra crianças/ adolescentes, em momento algum fez referência ao afastamento do convívio familiar, dando preferência à instituição de mecanismos de prevenção e de cunho "educativo", até porque mais do que "punir" (e se os pais/ responsáveis tiverem de ser "punidos" em tais casos, que isto ocorra na esfera PENAL), o importante é realizar as abordagens/ intervenções TÉCNICAS necessárias para evitar que aquela situação se repita (ou se agrave) e, acima de tudo, encontrar a solução que - CONCRETAMENTE - atenda aos interesses das crianças/ adolescentes que serão por elas atingidas (que precisam não apenas "ser", mas também "se sentir" efetivamente "PROTEGIDAS", e não "REVITIMIZADAS" por aqueles que, teoricamente, deveriam zelar pela plena efetivação de seus direitos - inclusive o direito à convivência familiar)...

São, enfim, algumas reflexões sobre o tema que compartilho com você e outros(as) colegas interessados(as).

Espero ter podido ajudar.

Murillo José Digiácomo
Curitiba, 26 de fevereiro de 2016

Nenhum comentário:

Postar um comentário