Mais de uma década depois, a jornalista e cineasta carioca lança no próximo dia 11 de março o longa "Proibido nascer no paraíso", documentário que acompanha o drama de três gestantes dessa ilha pernambucana que não permite o nascimento de bebês desde 2004.
"Esse filme não fala só sobre a mulher de Noronha, mas do poder da mulher de decidir sobre seu próprio corpo. Ela quer ter o filho e decidir como", explica Joana em entrevista por chamada de vídeo para Universa. Embora não haja uma lei específica que justifique a medida, toda gestante de Noronha é convidada a deixar a ilha no sétimo mês da gravidez para ter o bebê no continente.
Mulher como propriedade alheia
Para a cineasta, medidas como essas são como um apagamento da figura feminina, como se a mulher fosse "uma propriedade de terceiros". Mais do que um sentimento de não pertencimento, ao serem retiradas de casa em um momento de fragilidade, as mulheres ouvidas para esta reportagem foram unânimes em definir a situação como "pressão psicológica", "desgaste emocional" e "eterna luta pelos direitos".
A empresária noronhense Ana Carolina da Silva, a Babalu da Tapioca, é uma das mães que tiveram sua história retratada no documentário de Joana. Neta de nativos - o avô pescador chegou no arquipélago na década de 40, essa mãe de 34 anos se sente frustrada por não ter tido a primeira filha na própria terra onde nasceu.
A Universa, Babalu diz que começou a sofrer pressão já no quinto mês da gravidez com "uma papelada bem pesada, dizendo nas entrelinhas 'ou tu vai ou tu vai', já segurando na sua mão".
"Eu não estava me recusando a sair, mas só deixaria a ilha na data que meu estabelecimento comercial estivesse em ordem. Mas, naquele momento, eu já tinha perdido a batalha", explica a empresária que viajava mensalmente para fazer acompanhamento pré-natal no Recife.
Entre tantas tentativas de ter a filha Riana Valentina em Noronha e a decisão de sair "lá para fora", como o continente é chamado pelos locais, sua gravidez foi uma montanha russa de sentimentos, que oscilava entre a revolta e o conformismo, cuja turbulência o espectador também acompanha no filme.
"Foi muito desgastante porque deixei Noronha quando faltavam 15 dias para o parto. Sentia dores insuportáveis e meu telefone não parava, com ginecologista e conselho tutelar pressionando para eu deixar a ilha", diz Babalu.
Em um dos momentos mais poéticos do documentário, a diretora compara uma gravidez a um swell, como são conhecidas as fortes ondulações no mar causadas por tempestades oceânicas. "É uma inconstância com ondas não regulares que vêm de todos os lados. Durante o trabalho de parto, a gente é tomada por calor, frio, orgasmo, prazer e dor. Tudo misturado, mais ou menos como um sweel", compara Joana.
Segundo Babalu, ela só cedeu à pressão psicológica, como ela mesma descreve a situação, quando seu obstetra disse que, por conta do estresse, "era hora de abandonar o navio" e ir para o continente. "Foi aí que a ficha caiu. Depois de tanta luta, eu não podia perder a minha filha", explica Babalu, que enfrentou um trabalho de parto de 15 horas.
No Recife, chegou a comprar uma passagem de volta para o arquipélago, antes mesmo da filha nascer, mas foi impedida de embarcar pela companhia aérea, por questões de segurança. "Mas quer saber?", desafia Babalu antes do repórter finalizar a entrevista. "Eu faria tudo outra vez. Se vier outra criança, dessa vez eu não saio e me escondo lá no Buraco do Galego", diz, em referência à piscina natural na Praia do Cachorro.
"O que vivi foi uma crueldade dulpa", diz mãe
No ano passado, Alyne Dias de Luna, 31, ganhou o noticiário nacional quando decidiu desacatar a proibição de ter filhos em Fernando de Noronha. Mesmo com a intimação já emitida para deixar a ilha e com policiais na porta de casa, a grávida de oito meses conseguiu se esconder no terreno de um amigo.
Moradora da ilha desde 2009, Alyne informou à reportagem que, naquele momento, sua preocupação não era apenas o risco de um cesárea, mas o medo de se contaminar pelo coronavírus que atingia altos níveis na capital pernambucana.
"Foi uma crueldade dupla. Além de me afastarem do meu esposo, me levaram para uma cidade com pico de contaminação. Eu estava disposta a correr risco com a cesárea, mas não em me contaminar", explica Alyne para a reportagem.
Na análise da diretora do documentário, tiraram da gestante a opção de escolher qual risco correr. "Em que momento do século a gente se perdeu da nossa condição de fazer escolhas?", diz. Orientada por seu advogado e já com 34 semanas de gestação, Alyne se entregaria no dia seguinte, em pleno Dia das Mães, e seguiria para o aeroporto da ilha escoltada pela polícia.
"Não me arrependo do que fiz, mas não sei se faria de novo. Muitas pessoas me atacaram na internet e não quero essa adrenalina de novo", confessa Alyne, que deseja ter outros três filhos. Atualmente, ela aguarda decisão judicial sobre o caso, cujo processo, segundo ela, está parado devido à pandemia.
"O estado processou uma mulher cujo único crime é não querer sair de sua casa em uma ilha [que na época era] zero Covid e ser enviada para uma capital infestada", analisa a cineasta Joana.
Afinal, por que crianças não podem nascer em Noronha?
Um dos maiores desafios na construção do documentário "Proibido nascer no paraíso", filmado entre 2017 e 2019, foi explicar em pouco mais de uma hora a "complexidade de situações" que envolvem o tema. A explicação oficial mais difundida é a falta de estrutura hospitalar em Fernando de Noronha para o caso de complicações durante o parto.
Em nota enviada para Universa, a Secretaria de Saúde de Pernambuco informou que a medida tem "o único objetivo de garantir assistência qualificada às gestantes por ocasião do trabalho de parto, já que existe uma grande dificuldade de manter equipes completas na ilha".
De acordo com as contas apresentadas pela própria secretaria, seriam necessários R$ 3,6 milhões por ano para manter uma equipe médica em uma maternidade local. Com uma média anual de 30 nascimentos, cada bebê nascido na ilha custaria R$ 120 mil, aproximadamente, enquanto manter uma gestante por 90 dias no Recife custa R$ 8.900.
O apoio financeiro na capital pernambucana inclui a cobertura de gastos como hospedagem, alimentação e transporte para consultas.
Para a diretora do documentário, porém, não se trata apenas de ter uma maternidade, mas também de socorro médico. No caso de um acidente mais grave, por exemplo, um salve aéreo pode demorar cerca de seis horas para levar um paciente para o continente.
"Eu não estou brigando para ter uma maternidade em Fernando de Noronha, mas não faz sentido uma ilha oceânica não ter um centro cirúrgico, anestesista de plantão nem banco de sangue. Se o Neymar infartar em Noronha, ele vai morrer?", provoca a cineasta.
Fonte: UOL
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