terça-feira, 2 de junho de 2020

Crianças são grupo de risco invisível em emergência social



Por Débora Aranha*
Há poucos dias, quando o número de casos confirmados de Covid em Pernambuco passava a marca de 24 mil, a fundação The Lucy Faithfull Foundation, do Reino Unido, lançava, de Recife para o mundo, um relatório alarmante, revelador de que o estado de Pernambuco sofre também com uma outra espécie de “epidemia” silenciosa: o estupro de mulheres e crianças. Coincidentemente, a pesquisa cita uma dimensão estimada também de cerca de 24 mil casos por ano no estado, embora apenas em torno de 8,4% dos casos – cerca de dois mil ao ano – chegue ao conhecimento das autoridades. Diferente do que acontece com a Covid, que atinge mais gravemente adultos e idosos, o “grupo de risco” principal para a violência sexual tem um perfil muito diferente – mais da metade das vítimas são crianças e adolescentes. Entre estas, 88% são do sexo feminino e 81% têm menos de 14 anos de idade.
Em 2018, foram 1.981 ocorrências notificadas de crimes sexuais contra crianças e adolescentes em todo o estado. Mais da metade (52,4%) das ocorrências notificadas no sistema de saúde ocorre na Região Metropolitana do Recife, e quase um quarto (23,9%) está concentrada na capital. Nos últimos anos, os números têm crescido tanto nos registros policiais quanto nos atendimentos na saúde.
O mais chocante é que 67,2% dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes acontecem dentro de casa, justamente onde as crianças deveriam estar seguras, e são cometidos na sua maioria por homens conhecidos ou parentes próximos como pais ou padrastos. Na capital, Recife, esse percentual chega a impressionantes 72,9%. Crianças de 7 a 12 anos de idade são as mais afetadas pelo abuso sexual intrafamiliar. Para quase metade delas, o abuso continua ocorrendo outras vezes, frequentemente ao longo de anos, sob uma nuvem de medo, culpa e silêncio.
É preciso que a sociedade seja alertada: para milhares de meninas e meninos que convivem com o risco da violência sexual, o isolamento social pode ter significado uma sentença de confinamento com o seu agressor. Sem acesso a outros espaços seguros, como a escola, e sem contato com professores e outros adultos protetores que possam interditar o ciclo de revitimização, estão agora mais vulneráveis e com menos chance de pedir ajuda. É uma situação que, na pandemia, tende a se agravar.
As consequências para as vítimas são sérias e variam desde sintomas físicos a problemas de socialização, condutas sexuais inadequadas, ansiedade, baixa autoestima, medos, depressão, tentativas de suicídio, agressividade, baixo desempenho escolar, problemas alimentares e uso de drogas, entre tantos que podem permanecer por toda a vida. Nem sempre os adultos conseguem reconhecer o problema, e às vezes as consequências podem ser até fatais.
A quarentena aumenta também os riscos de outras formas de violência sexual. Crianças e adolescentes em casa passam muito mais tempo navegando na internet, frequentemente sem supervisão, e com maior possibilidade de serem expostos a materiais impróprios à sua idade, inclusive conteúdos gratuitos de sites pornográficos. Já se registra um aumento do acesso à pornografia online em todo o mundo durante a pandemia, e os controles de acesso a esses conteúdos são insuficientes.
A ong SaferNet, que mantém um canal de denúncias sobre crimes cibernéticos, também registrou um aumento de 108% nas denúncias de páginas com conteúdo de pornografia infantil durante a pandemia no país. Só no mês passado, foram quase dez mil denúncias. Isso porque, segundo a Europol, o crime organizado parece ter se adaptado aos novos tempos, aumentando sua participação em crimes online, como produção e distribuição de pornografia infantil, e diminuindo as atividades de tráfico e contrabando.
A ameaça pode chegar ainda por meio de pessoas que aliciam crianças e adolescentes para troca de mensagens com conteúdo sexual ou íntimo, em formas de texto, áudio, imagens, vídeos – prática conhecida como sexting. Aplicativos de redes sociais como whatsapp, instagram, messenger, são ambientes onde essa troca pode acontecer, envolvendo algumas vezes a utilização de perfis fake, outras vezes pessoas conhecidas. Quando as meninas têm imagens íntimas vazadas na internet, o impacto é tão sério que, segundo um estudo do Unicef, 80% de meninas que passaram por essa situação se sentiram culpadas e 27% pensaram em se suicidar. Por isso muitas acabam sendo vítimas de chantagem e sextorsão.
Tanto no caso do abuso sexual em casa, quanto no caso do aliciamento online, é comum que a culpa acabe recaindo sobre a própria menina, que é acusada de provocar, inventar, ou não ter se protegido do agressor ou aliciador. É uma estranha inversão de papéis, já que há 30 anos o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecia que o dever de manter a criança e o adolescente a salvo da violência é da família, da sociedade e do Estado, com absoluta prioridade.
Em tempos de pandemia, é preciso transformar a casa em um lugar realmente seguro para meninas e meninos. Existem várias atitudes que adultos precisam ter. O primeiro passo é, na medida do possível, cuidar da própria saúde mental, reduzir o consumo de álcool e dedicar tempo de qualidade aos seus filhos e filhas. Estabelecer diálogos mais abertos e cultivar laços de confiança com as crianças. Conhecer os espaços online por elas, acompanhar o uso da internet, utilizar as ferramentas de controle parental, orientar sobre riscos online e conversar sobre sexualidade e auto-proteção.
A segunda atitude do adulto protetor é não se calar: qualquer suspeita de violência sexual contra criança ou adolescente deve ser denunciada ao Disque 100, app Direitos Humanos BR, Conselhos Tutelares ou delegacias. Para os crimes cibernéticos, há uma central de denúncias disponível no site da Safernet.
Por fim, é preciso entender que essas violências, em última instância, são produtos de normas sociais e relações de gênero que precisam ser desconstruídas, e essa mudança começa em casa. Como afirmou Gilberto Dimenstein em O Cidadão de Papel, “a criança é o elo mais fraco e exposto da cadeia social”. Gilberto partiu na última sexta-feira (29), mas deixou viva uma mensagem que não esqueceremos: nas engrenagens do colapso social, a infância é a maior vítima, e interromper essa engrenagem é tarefa de todos nós.
O relatório completo sobre violência sexual contra crianças e adolescentes em Recife e Pernambuco, elaborado pela Ideário Consultoria com apoio da Lucy Faithfull Foundation, está disponível para download aqui.
Débora Aranha é ativista em direitos humanos, sócia da Ideário Consultoria e assessora para o Brasil das organizações The Lucy Faithfull Foundation e The Freedom Fund. É colaboradora do Instituto Latinoamericano de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos e ex-presidente do Movimento Contra o Tráfico de Pessoas.



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