segunda-feira, 24 de junho de 2024

O Estatuto da Criança e do Adolescente e as portarias judiciais. Por: Murillo José Digiácomo.


Portarias judiciais expedidas pelos Juizados da Infância e Juventude visando regulamentar situações envolvendo crianças e adolescentes são extremamente comuns, sendo difícil encontrar uma comarca que não as possua.

Infelizmente, no entanto, também é difícil encontrar uma portaria judicial que, quer em seu processo de elaboração, quer em seu conteúdo, não apresente vícios de forma e/ou fundo que acarretam sua nulidade.

Sem incursionar mais profundamente nas origens "históricas" das portarias judiciais, para fins da presente exposição entendemos suficiente mencionar que, sob a égide do famigerado Código de Menores, o Juiz da Infância e Juventude (então chamado de "Juiz de Menores") possuía um "poder regulamentador" bastante amplo, que lhe permitia, a seu "prudente arbítrio", fazer as vezes de verdadeiro legislador, "suprindo lacunas" e "adaptando" a lei àquilo que entendia mais adequado à realidade local.

Com efeito, dizia o art. 8º da Lei nº 6.697/79 que "a autoridade judiciária, além das medidas especiais previstas nesta Lei, poderá, através de portaria ou provimento, determinar outras de ordem geral, que, ao seu prudente arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência, proteção e vigilância ao menor, respondendo por abuso ou desvio de poder" (verbis).

Usando desse permissivo legal, a autoridade judiciária expedia portarias sobre os mais variados temas, não raro mais voltados à restrição do que ao asseguramento de direitos de crianças e adolescentes.

O ato dispensava maiores formalidades, critérios ou justificativas, sobre ele praticamente inexistindo qualquer controle, até mesmo em função das limitadas atribuições que a legislação revogada deferia ao Ministério Público [nota 1], que então possuía um perfil constitucional muito diferente daquele alçado após a Constituição Federal de 1988.

E foi justamente o advento da "Constituição Cidadã" que deu início à transfiguração do instituto da portaria judicial regulamentadora, notadamente através da mudança do paradigma da "situação irregular do menor" para o da "proteção integral à criança e ao adolescente", que fez com que crianças e adolescentes fossem considerados sujeitos de direitos, e não mais meros objetos da intervenção do Estado (lato sensu) [nota 2], e ainda da regra que estabeleceu a obrigatoriedade de que todas as decisões judiciais fossem devidamente fundamentadas [nota 3].

Diante de tais disposições constitucionais, bem como de outras estabelecidas pela Lei Maior justamente para evitar o cometimento de abusos por parte dos Poderes constituídos, não mais se concebia pudesse a autoridade judiciária, agindo apenas com base em seu "prudente arbítrio", tolher direitos de cidadãos, máxime quando estes fossem crianças e/ou adolescentes.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, que substituiu o Código de Menores, ao optar pela manutenção em seu texto do instituto da portaria judicial regulamentadora (ou disciplinadora, segundo seu enunciado), teve de conciliá-lo com a nova orientação constitucional, acabando por dar-lhe uma "roupagem" totalmente diversa da que até então se conhecia, de modo a torná-la verdadeiro produto do poder jurisdicional (e não "legiferante") da autoridade judiciária competente.

Neste sentido, o art.149 da Lei nº 8.069/90, que passou a regular a matéria, procurou primeiramente limitar as hipóteses em que a autoridade judiciária detinha competência para expedição de portarias ou alvarás, tendo em seus incisos I e II efetuado uma enumeração absolutamente taxativa (e não meramente exemplificativa), dos casos passíveis de tal regulamentação.

Fora das hipóteses restritas do art.149, incisos I e II, da Lei nº 8.069/90, portanto, o Juiz da Infância e da Juventude não tem competência para expedição de portarias e alvarás, e qualquer ato judicial que extrapole os referidos parâmetros/limites legais será nulo de pleno direito.

Assim sendo, não há mais lugar para práticas arbitrárias de outrora, como os famigerados "toques de recolher" que, embora bastante comuns à época do revogado "Código de Menores", hoje violam de forma expressa não apenas o âmbito da competência normativa da Justiça da Infância e da Juventude, mas as próprias disposições contidas nos arts. 3º, 4º, caput, 5º, 15, 16, inciso I e 18, da Lei nº 8.069/90, bem como o disposto no art. 5º, inciso XV, da Constituição Federal, que assegura a todos, independentemente da idade, o direito de ir e vir dentro do território nacional [nota 4].

Importante observar que, mesmo nas hipóteses em que a lei confere à Justiça da Infância e da Juventude a competência para expedir portarias e alvarás, a atividade jurisdicional deve ser exercida com a estrita observância de determinadas regras e parâmetros, mais uma vez sob pena de nulidade do ato respectivo.

Um exemplo clássico é o caso das portarias judiciais disciplinadoras, que somente terão lugar nas hipóteses expressamente relacionadas no art. 149, inciso I, da Lei nº 8.069/90 e, mesmo em tais casos, somente atingirão crianças e/ou adolescentes que estiverem desacompanhados de seus pais ou responsável legal [nota 5].

De modo a deixar claro que a expedição de portarias e alvarás judiciais não mais está sujeita ao "prudente arbítrio" do magistrado, mas sim deve estar calcada em elementos concretos, o art. 149, §1º da Lei nº 8.069/90 estabeleceu a obrigatoriedade de o ato judicial levar em conta, dentre outros, diversos fatores expressamente relacionados [nota 6], alguns dos quais, como a "existência de instalações adequadas" (alínea "c") e o "tipo de freqüência habitual ao local" (alínea "d"), somente passíveis de obtenção através da realização de vistorias e sindicâncias prévias.

No mesmo diapasão, o art. 149, §2º do citado Diploma Legal, em consonância com o art. 93, inciso IX da Constituição Federal, estabeleceu a obrigatoriedade da fundamentação da medida caso a caso, vedando as determinações de caráter geral, que abrangiam um número indeterminado de locais e estabelecimentos, outrora permitidas.

A título de ilustração, vale colacionar o comentário de WILSON DONIZETI LIBERATI sobre a matéria: "a portaria expedida pelo Juiz da Infância e Juventude não poderá regulamentar medidas de caráter geral não previstas em lei, como previa o art.8º do Código de Menores revogado. Elas deverão ser claras e precisas, com determinação singular dos casos que pretendem regular, não autorizando o juiz a suprir eventuais lacunas existentes na lei. Tem-se, pois, que a relação apresentada pelo art.149 é exaustiva, não sendo possível a interpretação ampliativa de outros casos" (In Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 4ª Edição. Malheiros Editores. São Paulo, 1995. pag.127).

As disposições acima relacionadas, somadas à previsão contida no art. 199 da Lei nº 8.069/90 de que "contra as DECISÕES proferidas com base no art. 149 caberá recurso de APELAÇÃO" (verbis - grifei), consagram a idéia de que a expedição de portarias e alvarás judiciais somente pode ocorrer como resultado de um procedimento especificamente instaurado para tal finalidade, direcionado a um ou mais locais/estabelecimentos previamente determinados e perfeitamente identificados, no qual será obrigatória a intervenção do Ministério Público.

Mas que procedimento?

Embora a Lei nº 8.069/90 não tenha previsto de maneira expressa um procedimento próprio para a expedição de portarias e alvarás judiciais, é perfeitamente possível enquadrá-lo na disposição genérica contida no art.153 do citado Diploma Legal, segundo o qual "SE A MEDIDA JUDICIAL a ser adotada NÃO CORRESPONDER A PROCEDIMENTO PREVISTO NESTA OU EM OUTRA LEI, a autoridade judiciária poderá investigar os fatos e ordenar de ofício as providências necessárias, OUVIDO O MINISTÉRIO PÚBLICO" (verbis - grifei) [nota 7].

Em que pese o acima exposto, poucas são as portarias disciplinadoras [nota 8] expedidas de forma regular, em procedimento próprio, com a prévia realização de sindicâncias e vistorias, fundamentação adequada e efetiva intervenção do Ministério Público.

A regra, lamentavelmente, ainda tem sido a utilização da sistemática do revogado "Código de Menores", com portarias expedidas de forma aleatória e genérica, fora das hipóteses previstas em lei, sem qualquer critério ou fundamentação, com a simples cientificação do órgão do Ministério Público após sua publicação.

Desnecessário dizer que, portarias assim expedidas padecem do vício insanável da NULIDADE ABSOLUTA, como aliás tem decidido, de forma reiterada, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, como bem exemplifica o aresto a seguir transcrito:

"INFÂNCIA E JUVENTUDE - INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA - PORTARIA QUE ESTABELECE PROIBIÇÃO SEM FUNDAMENTAÇÃO - NULIDADE.
- O arbítrio judicial legitima-se na fundamentação de seus atos, devendo o juiz dar as razões, caso a caso, ao estabelecer o disciplinamento previsto no artigo 149, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
- Nulidade do processo, por falta de fundamentação da portaria disciplinadora"
(Apelação nº 055-0, de Ponta Grossa. Acórdão nº 8041. Rel. Des. Dilmar Kessler. j. e, 18/05/98. In Revista Igualdade 19/205).

Vale repetir que uma portaria disciplinadora não é um ato de mera liberalidade da autoridade judiciária, mas sim deve ter sua expedição justificada e fundamentada em elementos suficientes a permitir o controle de sua legalidade pelas instâncias superiores.

Tais elementos devem ser colhidos dentro de um procedimento judicial específico, instaurado de ofício ou a requerimento do Ministério Público, Conselho Tutelar ou outro órgão ou mesmo pessoa interessada, onde apesar de a autoridade judiciária ter maiores poderes de investigação, será imprescindível a tomada de algumas providências e cautelas básicas:

a autuação formal do ato ou requerimento que deflagra o procedimento, de modo a torná-lo oficial;
a perfeita identificação, qualificação e individualização de cada um dos locais e estabelecimentos que serão atingidos pela norma (inclusive com a indicação de seus responsáveis legais);
a realização de vistorias e sindicâncias nos locais e estabelecimentos que serão atingidos pela norma (devendo para tanto contar com o concurso dos "comissários de vigilância" ou "agentes de proteção da infância e juventude" [nota 9], representantes da vigilância sanitária, corpo de bombeiros, polícias civil e militar etc.), sem embargo da coleta de outras provas que entender necessárias;
a intimação do órgão do Ministério Público para acompanhar e fiscalizar todo o trâmite procedimental, culminando com a emissão de parecer de mérito a seu término;
a obrigatoriedade que a decisão final tenha a forma de sentença, contendo relatório, fundamentação adequada (em que serão levados em conta, dentre outros fatores, os itens relacionados no art.149, §1º, alíneas "a" a "f" da Lei nº 8.069/90) e dispositivo;
a publicação do ato, com a cientificação formal de todos os responsáveis pelos locais e estabelecimentos atingidos pela portaria, para que possam, no prazo de 10 (dez) dias [nota 10], interpor recurso de apelação contra tal decisão (devendo tal advertência constar do mandado respectivo).
Vale também o registro que embora o ideal seja a instauração de um procedimento específico para cada local ou estabelecimento a ser atingido pela medida judicial, por razões de ordem prática é admissível englobar vários num único feito, desde que cada qual apresente características semelhantes, seja devidamente nominado quando de sua deflagração, individualmente vistoriado e sindicado ao longo de sua instrução e, ao final, tenha sua situação em particular devidamente analisada pela autoridade judiciária quando da fundamentação, sendo contemplado por item próprio na decisão que opta pela expedição da portaria disciplinadora respectiva.

Nesse contexto, não é difícil perceber que a "portaria" propriamente dita não passará de um dos elementos da decisão, o ponto culminante de todo um procedimento judicial de natureza pública, deflagrado e/ou fiscalizado pelo Ministério Público, sujeito a regras e princípios próprios, onde não mais há lugar para o arbítrio da autoridade judiciária.

Apesar de a sistemática introduzida pela Lei nº 8.069/90 ser muito mais complexa do que a anterior, é ela sem dúvida muito mais correta e acima de tudo democrática, e uma vez fielmente observada, dará pouca ou nenhuma margem para os abusos outrora verificados e que, em última análise, foram justamente a razão dessa nova regulamentação, fazendo com que a portaria judicial deixe de ser um mecanismo de opressão de "menores" [nota 11] para se tornar mais um instrumento de proteção de direitos de crianças e adolescentes.

Para que seus objetivos sejam cumpridos, no entanto, evidente que não basta a expedição, publicação e sempre salutar divulgação [nota 12] da portaria disciplinadora, sendo absolutamente fundamental a permanente fiscalização de seu cumprimento, com a deflagração de procedimentos (arts. 194 usque 197 da Lei nº 8.069/90) e a aplicação de sanções administrativas (art. 258 do mesmo Diploma Legal), toda vez que for detectada sua violação pelos estabelecimentos por ela atingidos [nota 13] .

Uma vez observadas todas as regras e princípios acima relacionados, se estará enfim criando um instrumento eficaz no sentido da proteção integral de crianças e adolescentes, objetivo maior de toda e qualquer ação daqueles que militam na Justiça da Infância e Juventude e lutam pela plena efetivação da Lei nº 8.069/90.

Sobre o autor:
Murillo José Digiácomo é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, integrante do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente (CAOPCA/MPPR) e membro da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude - ABMP.

Fonte: MPPR

Nenhum comentário:

Postar um comentário