domingo, 26 de junho de 2022

Aborto legal é desencorajado em hospitais cadastrados para o procedimento.


Permitido pela legislação brasileira desde 1940, o aborto em casos de gravidez decorrente de estupro ainda é um tabu. O caso da menina de 11 anos que foi estuprada e teve o direito ao aborto negado pela Justiça de Santa Catarina jogou luz sobre a difícil situação de quem precisa realizar esse procedimento.

Como se não bastasse o trauma causado pelo estupro, muitas vítimas sofrem pela segunda vez ao procurar uma unidade de saúde pública para agendar o procedimento de interrupção de gestação, diz um estudo da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

O trabalho realizado em 2020 e atualizado em 2021 tinha o objetivo de mostrar como os hospitais públicos cadastrados pelo Ministério da Saúde para a realização do aborto em casos de estupro recebiam ligações de pessoas que desejavam agendar o procedimento.

A postura dos profissionais que atendiam as chamadas foi classificada como "não acolhedora" pelos autores. As pesquisadoras concluíram que o aborto legal é "desencorajado" em muitos hospitais que deveriam acolher as vítimas de estupro.

O estudo apontou ainda que "dificultar o acesso ao serviço de abortamento é uma estratégia política institucionalizada e articulada e segue vitimizando mulheres e meninas que optam pela realização do aborto".

"Durante o desenvolvimento da pesquisa foi possível verificar a falta de preparo dos hospitais em fornecer informações sobre aborto legal. As pesquisadoras passaram pelos mais diversos tipos de situação, desde recepcionista pregando que aborto é crime, até mesmo ouvindo xingamentos e tendo as ligações encerradas tão logo a temática era apresentada. O que era para ser um mapa sobre hospitais que realizam ou não aborto legal, se tornou um mapa de desinformação sobre aborto", dizia um trecho do documento produzido pela UniRio.

Batizado como “Não posso passar essa informação': O direito ao aborto legal no Brasil", o trabalho foi desenvolvido pelas pesquisadoras Eliane Vieira Lacerda Almeida, Lara Ribeiro Pereira Carneiro, Lorenna Medeiros Toscano de Brito, e Maria Inês Lopa Ruivo, sob a orientação da professora Érica Maia Arruda, do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social da universidade.

"Esse é um problema cultural do nosso país, mas também de falta de estrutura. Vivemos em uma sociedade muito violenta e machista. É cultural, mas também é de governo. Uma normativa do Ministério da Saúde passou a exigir muito mais elementos para a realização do aborto legal, que deveria ser simples e rápido, pelo bem da vítima. Essa burocratização só fortalece esse machismo e essa cultura de autoritarismo", disse a orientadora Erica Arruda.

De acordo com a legislação, a mulher que sofreu estupro tem o direito a atendimento gratuito no SUS, que inclui:

o recebimento de tratamentos contra DSTs;
a pílula do dia seguinte;
apoio psicológico;
e, em casos de gravidez, o direito ao aborto legal.
A Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde define o aborto como a interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª segunda de gestação.

O Ministério da Saúde editou em 2012 uma norma técnica em que recomenda "limitar o ingresso para atendimento ao aborto previsto em lei com 20 semanas de idade gestacional" e afirma que "não há indicação para interrupção da gravidez após 22 semanas de idade gestacional". A lei brasileira, no entanto, não estabelece tempo máximo de gestação para permitir o aborto nas hipóteses em que o procedimento é liberado.

Uma menina de 11 anos descobriu que estava na 22ª semana de gravidez ao ser encaminhada a um hospital de Florianópolis e ter o procedimento de aborto negado. Ela procurou o hospital em 5 de maio, mas só fez o procedimento após obter autorização judicial – que também não é exigida por lei – em 22 de junho.

No sábado (25), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, negou que a portaria tenha influenciado na recusa do hospital.

Contudo, especialistas na área dizem que a lei não prevê um tempo máximo de gestação para a realização do procedimento.

A lei brasileira também não determina que a mulher vítima de estupro precise apresentar boletim de ocorrência, laudo do IML ou autorização judicial para garantir o direito ao aborto.

Para Júlia Rocha, coordenadora de acesso à informação e transparência da Ong Artigo 19, responsável pelo Mapa do Aborto Legal, qualquer hospital que ofereça serviços de ginecologia e obstetrícia deve ter equipamento adequado e equipe treinada para realizar abortos nas situações previstas em lei.

"É importante a gente relembrar que todo equipamento público que tenha capacidade tem a obrigação de prover esse serviço. Isto está previsto desde 2015, pela extinta Secretaria de Políticas para Mulheres", comentou Julia.

"Esse é um direito humano e as pessoas precisam estar cintes que ele existe", acrescentou.
Só 4 hospitais do RJ aparecem em Mapa do Aborto Legal
Desenvolvido pela Ong Artigo 19, o Mapa do Aborto Legal mostra quais unidades de saúde pública responderam positivamente ao contato de vítimas de estupro que tentavam agendar a interrupção da gestação.

Segundo o levantamento feito em 2020, em todo o estado do Rio de Janeiro, apenas quatro unidades de saúde fazem o procedimento em casos de estupro. São elas:

Hospital da Mulher Heloneida Studart, São João de Meriti;
Maternidade Carmela Dutra, no Méier, na Zona Norte do Rio;
Hospital Maternidade Fernando Magalhães, em São Cristóvão, na Zona Norte do Rio;
e a Maternidade Escola da UFRJ, em Laranjeiras, na Zona Sul.
O g1 ouviu o Governo do Estado do Rio e, segundo ele, só na esfera estadual há três unidades capazes de fazer esse tipo de atendimento: o Hospital da Mulher Heloneida Studart; o Hospital Estadual Azevedo Lima, no Fonseca, em Niterói; e o Hospital Estadual dos Lagos Nossa Senhora de Nazareth, em Saquarema.

Veja no fim da reportagem o que mais falaram o governo, a Prefeitura do Rio e o Ministéiro da Saúde sobre o tema.

Metodologia do levantamento
O trabalho realizado pela ong Artigo 19 pretende monitorar, centralizar e compartilhar informações públicas sobre aborto legal no Brasil.

Pesquisadoras da ONG ligaram para todos os hospitais disponibilizados pelo Ministério da Saúde, que se autodeclararam aptos a realizar a interrupção da gravidez para os casos previstos em lei.

Segundo Júlia Rocha, o mapa tenta identificar onde vítimas de estupro podem buscar atendimento qualificado para realizar o aborto legal.

"A nossa percepção é que existe uma falha no fornecimento da informação e no treinamento dos profissionais que estão na ponta realizando o acolhimento. Não só recebemos muitas negativas, como também informações equivocadas", disse Julia.

A pesquisadora lembrou que muitas atendentes não conhecem a lei e tentam convencer a vítima de estupro a não abortar.

"Teve um caso muito emblemático no Rio de Janeiro. Uma atendente respondeu: 'Direitos humanos para humanos direitos. Aqui a gente não faz esse tipo de coisa'. Em outros casos, as pessoas perguntavam se já estava com o boletim de ocorrência, se tinha autorização judicial para fazer o procedimento. Isso foi bastante comum", contou.

Julia acredita que o principal problema dos hospitais está no atendimento. Autores da pesquisa dizem que o Ministério da Saúde diz que dez unidades de saúde da capital do Rio de Janeiro informaram realizar a interrupção da gestação de acordo com a lei. Ao g1, entretanto, o Ministério não especificou a quantidade de unidades.

Segundo o Mapa do Aborto Legal, só três hospitais na cidade acolheram possíveis vítimas de estupro que buscavam agendar o aborto legal.

"A gente precisa ter uma divulgação melhor para a população de modo geral. Mas também que haja um melhor treinamento para as equipes. Quando a gente pensa na capacitação dos profissionais de saúde é obvio que essas pessoas também devem ser multiplicadoras da informação", argumentou Julia.
O que dizem as autoridades de saúde
Questionado pelo g1 por e-mail, o Ministério da Saúde não respondeu as perguntas feitas. Entretanto, um assessor da pasta disse, por telefone, que as informações sobre os hospitais que realizam o aborto legal só poderiam ser fornecidas pelas autoridades de saúde de estados e municípios.

A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro informou, em nota, que 'todas as maternidades realizam o acolhimento e atendimento às vítimas de violência sexual e/ou que demandam a realização do aborto previsto em lei'.

"Todos os casos são acompanhados por equipe multiprofissional de forma articulada entre as Subsecretarias de Atenção Primária (SUBPAV) - por meio da Gerência da Mulher e Grupo Articulador Regional (GAR) - e Atenção Hospitalar, Urgência e Emergência (Subhue)/SHPM. A identidade das pacientes é mantida em sigilo pelo sistema de saúde”.

“Além do acolhimento e atendimento, a notificação imediata da violência sexual deve ser realizada pelo(a) profissional de saúde que prestar o primeiro atendimento ao caso em até 24 horas, por e-mail ou telefone, ao Serviço de Vigilância em Saúde. A Ficha do SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) deve ser preenchida e encaminhada ao Serviço de Vigilância em Saúde da respectiva Coordenadoria de Atenção Primária (CAP).

“Após o primeiro atendimento, o(a) profissional de saúde deve traçar condutas de acordo com a particularidade do caso e orientar sobre a rede de saúde e de proteção social. Deve ser garantida a continuidade do acompanhamento à vítima de violência sexual, com encaminhamento responsável ao serviço que fará o seguimento. Cada CAP conta com um GAR que, dentre suas competências, prevê a articulação entre os serviços que atendem casos de violência e a Atenção Primária à Saúde (APS) para o planejamento e avaliação de ações no enfrentamento às violências. O GAR pode ser acionado quando houver necessidade de esclarecimento quanto aos fluxos de atendimento nos respectivos territórios."

A Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro informou que três unidades contam com atendimento especializado e humanizado às vítimas de violência sexual e estão aptas a realizar procedimentos previstos por lei e normativas do SUS relativas ao aborto legal.

"A Secretaria realiza rotineiramente a capacitação dos profissionais e a avaliação dos atendimentos nas unidades para garantir que o atendimento e o acolhimento das vítimas sejam realizados de acordo com os protocolos da pasta".

Fonte: G1

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