domingo, 6 de fevereiro de 2022

Arminha na mão, vacina no braço: Cidade mais bolsonarista do país em 2018 está quase 100% vacinada e segue fiel ao presidente.

 
O caminho para chegar a Nova Pádua, na Serra Gaúcha, tem cheiro de suco de uva. Não podia ser diferente, com os extensos parreirais à margem de todas as estradas ao seu redor. Os cachos suspensos sugerem que a colheita na cidade mais bolsonarista do Brasil está próxima. Repetimos a rota quase três anos após nossa primeira visita ao município e, lá, encontramos raríssimos eleitores arrependidos, produtores rurais enfrentando dificuldades e uma surpresa: quase 100% da população vacinada.

O autodeclarado “pequeno paraíso italiano”, no Rio Grande do Sul, foi a cidade que deu o maior número de votos para Bolsonaro. Lá, 82% dos eleitores escolheram o então candidato do PSL no primeiro turno da eleição de 2018. Naquela ocasião, o Intercept foi até a cidade para conhecer essas pessoas e entender quais eram suas motivações. A identificação com muitas pautas que Bolsonaro defende, somado ao antipetismo convicto, fez o percentual de votos no representante de extrema direita saltar para quase 93% no segundo turno.

Com 2.563 habitantes, Nova Pádua oferece uma amostra dos 11% do eleitorado que permanecem fiéis ao presidente, independentemente do que ele faça – ou deixe de fazer. Lá, encontrei pessoas como o padre José Mussoi, um dos bolsonaristas mais extremos com quem conversei. Segundo ele, os números de infectados e mortos na pandemia causada pelo novo coronavírus foram “falsificados pela globolixo”, e tudo não passa de uma “terceira guerra mundial bacteriológica para criar outra ordem econômica social no mundo”. Questionado sobre que ordem seria essa, ele gaguejou um pouco antes de cravar. “A ordem da escravidão. É um projeto comunista, escravocrata que está aos poucos tomando conta do mundo. Para combater, precisa parar de assistir a globolixo, que representa todos os jornais e a imprensa. Em segundo lugar, tem que investir na educação séria. Há muitas décadas, o projeto de educação está sendo enfraquecido para alienar o povo”.

Como em 2018, ainda é difícil encontrar alguém que não apoie Bolsonaro, mas a pandemia revelou algo que distancia o presidente até dos mais ferrenhos bolsonaristas do “paraíso italiano”: a vacinação contra a covid-19. Enquanto o presidente insiste em dizer que não se vacinou e faz campanha contra os imunizantes, 83% de toda a população de Nova Pádua tomou as duas doses ou a dose única da vacina, e um terço já aplicou a dose de reforço.

Segundo Paulo Paliosa, diretor municipal de saúde, considerando que a vacina infantil ainda não havia chegado à cidade na primeira quinzena de janeiro e que algumas pessoas que trabalham em municípios vizinhos se vacinaram nessas cidades, a adesão foi de praticamente 100%. “Nossa ideia, como defensores do SUS que somos”, diz o gestor, dando ênfase à frase, “é que a população tenha acesso e use o sistema. A vacina veio para ser aplicada, e nossa função, além de vacinar, é orientar as pessoas”.

O município registrou 411 casos de covid-19 e 12 mortes, um número alto para um lugar com menos de 3 mil habitantes. Mas Paliosa acredita que a quantidade de diagnósticos se deve ao grande número de testes realizados – uma taxa por 100 mil habitantes 64% acima da média nacional.

O secretário de Saúde, Odir Boniatti, um bolsonarista convicto que tem medo de o Brasil se tornar “um socialismo, tipo Venezuela ou Argentina”, fala com orgulho sobre o investimento do município na saúde pública, embora mais da metade da população tenha convênios médicos. “Aplicamos ao menos 20% da receita tributária na saúde”, me afirmou – o mínimo exigido por lei é 15%.

O município não tem hospital, mas o secretário Boniatti disse que todas as pessoas diagnosticadas com covid-19 são acompanhadas por telefone, o que só é possível devido ao tamanho do município. Uma enfermeira liga diariamente para saber como paciente e a família estão se sentido, passa todas as informações para o médico e, caso o quadro se agrave, a pessoa é levada para o hospital mais próximo, em Flores da Cunha ou Caxias do Sul.

Quanto à vacinação, disse Boniatti, a secretaria fez busca ativa pelas pessoas que não compareceram, usando os telefones cadastrados por elas no posto de saúde. “Ligávamos para elas e, se tivessem alguma dúvida sobre a vacina, explicávamos de imediato, e a pessoa já vinha. Ninguém se recusou”.

A forma como o município conduziu as políticas de saúde durante a pandemia mostra como os serviços públicos funcionam bem em Nova Pádua. Em 2010, ano do último levantamento do IBGE, a cidade estava em primeiro lugar no ranking nacional da taxa de alfabetização, com todas as crianças entre seis e 14 anos na escola. As ruas de asfalto ou de calçamento são limpas e bem iluminadas. As áreas de convívio social oferecem segurança o bastante para que os moradores se reúnam todos os dias ao final da tarde e conversem amistosamente. Uma cena que, à primeira vista, é comum em qualquer cidade do interior, mas que não é exatamente igual em Nova Pádua.

Pobreza é algo que parece não existir por lá. Nem mesmo o bairro mais distante do centro, conhecido como loteamento, pode ser considerado uma periferia. A sensação é de que eu não estava no Brasil. Nunca havia ido ao sul do país, mas a fotógrafa que estava comigo, gaúcha, teve a mesma percepção. Impressiona, por exemplo, a beleza das casas, muitas delas com piscina, sobrado, grandes varandas, janelas e portas trabalhadas em madeira, além de belos jardins gramados e floridos. A cidade é quase um condomínio de mansões.

Nova Pádua facilmente serviria de cenário para qualquer novela que se passasse em uma vila italiana próspera – incluindo os moradores, brancos e com forte sotaque estrangeiro, como personagens. Às vezes, era difícil entender o que eles falavam. Os paduenses descendem dos imigrantes italianos que, na tentativa governamental de embranquecer o Brasil, receberam incentivos para se instalar na região sul entre os séculos 19 e 20. Pádua, aliás, é o nome de uma cidade do norte da Itália. Vem daí tantas referências que a Pádua brasileira preserva. Nos dois dias que permaneci na cidade, só vi uma pessoa negra. Era a moça que fazia a limpeza na pousada onde nos hospedamos.

Fonte: The Intercept

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