Segundo o dicionário da língua portuguesa, Aurélio, mãe é "a mulher que deu à luz, que cria ou criou um ou mais filhos". O termo se expande quando se leva em conta a diversidade de lares e o fato de que a criança é criada também pela família que a cerca. Em Belém, capital do Pará, uma mãe trans perdeu a guarda do filho de apenas 7 anos, após a repercussão de um vídeo na internet. O motivo: exposição da criança a situação vexatória.
Joaquim não foi gestado por Bárbara, mas escolhido, assim como as mulheres que escolhem maternar suas crias. Gerado por uma conhecida da família, o menino passou a fazer parte vida de Pastana quando tinha sete dias de vida.
A mãe biológica, que vive até hoje em situação de vulnerabilidade social, teve um parto difícil e a criança nasceu prematura e com uma série de complicações, o que levou o menino a ter que lutar contra a pneumonia ainda nos primeiros meses de vida.
A mãe de Bárbara, avó da criança, de 71 anos, soube da situação e se prontificou a ajudar: "Ser mãe do Joaquim era inevitável. Foi uma decisão minha e da minha mãe, que hoje está sofrendo muito com toda essa situação".
Do registro da criança a perda da guarda
Tudo começou no dia 3 de abril, quando um vídeo publicado no Instagram, pela própria Bárbara, tornou-se o motivo pelo qual ela perdeu a guarda da criança.
Ela, conhecida por usar perucas exuberantes, pegou uma peruca pequena e a colocou na cabeça. O menino, vendo a mãe com a peruca começou a rir dela. Ela explicou para ele que ele não deveria rir de uma pessoa porque ela é diferente e colocou a peruca no menino.
O ato foi gravado por ela e publicado no Instagram. O vídeo, editado, viralizou na internet, sendo compartilhado, inclusive, pelo deputado federal Éder Mauro (PSD-PA), líder da Bancada da Bala na região Norte, que escreveu em seu Twitter que Bárbara "obrigou o seu filho, ainda criança, a usar perucas contra a sua vontade".
O vídeo teve quase três mil compartilhamentos e os apoiadores de Éder Mauro citaram que o caso deveria ser levado ao Ministério Público e ao Conselho Tutelar, o que foi feito.
De acordo com a denuncia, Bárbara descumpriu o artigo 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) "submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento". Se uma pessoa for flagrada nessa situação pode ser condenada a cumprir uma pena de seis meses a dois anos de prisão.
Após perder a guarda da criança, Bárbara que era Coordenadora da Casa Dia, unidade que atende pacientes do vírus HIV/Aids em Belém, pediu exoneração do cargo, por acreditar que a posição que ocupava agravou ainda mais a perseguição que sofreu na internet.
Sem o filho e sofrendo ameaças de morte
Além de perder a guarda da criança, Bárbara precisou registrar um boletim de ocorrência no dia 11 de maio devido ao número de ameaças de morte que passou a receber na internet.
O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2020, 175 travestis e mulheres transexuais foram assassinadas. A alta é de 41% em relação ao ano anterior, quando foram registrados 124 homicídios.
Fundamentos do ECA
Assim como a denúncia que fez com que Bárbara Pastana perdesse a guarda do seu filho está prevista no artigo 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a premissa do estatuto é de que a criança tenha ainda a sua saúde, segurança e bem-estar garantidos.
Bárbara contesta a conduta do Conselho Tutelar do Pará. Segundo ela, nenhuma conversa prévia foi feita e o seu filho foi retirado do convívio não apenas com ela, mas com a avó com que mora.
Pastana lembra ainda que a maternidade não é pronta, mas sim construída com erros e acertos e que, apesar de o caso ter chegado a muitas pessoas como uma situação vexatória, foi uma tentativa de dizer ao Joaquim que ele não deveria rir de uma pessoa, porque ela usa uma peruca diferente e que se porventura ela se excedeu no ato, gostaria de ser aconselhada, mas não punida com a ausência do seu filho.
Eu não nasci mãe, aliás ninguém nasce mãe, as pessoas vão aprendendo
"Eu não nasci mãe, aliás ninguém nasce mãe, as pessoas vão aprendendo e elas se tornam, se formam grandes mulheres, grandes mães no decorrer da vida e foi assim mesmo comigo".
Outro ponto levantado pela ativista é que a criança não está acompanhando as aulas online no seu lar temporário e que em nenhum momento foi levado em consideração o ambiente familiar que o menino tinha.
"Ele estuda em uma escola boa e está em processo de alfabetização perdendo aula. Ele tem amigos, uma família, e essa parte ninguém vê. Essa fiscalização quanto ao bem-estar do meu filho quem me ameaça na internet não liga. A única coisa em que focaram era no fato de que ele tem uma mãe trans", diz ela.
Decisão precisa ser revista
Para Amanda Oliveira, advogada especialista em Direito das Famílias e Sucessões, mãe e ativista dos direitos humanos, a saúde, segurança e bem-estar devem ser as coisas mais importantes quando se fala em cuidado de crianças e adolescentes e que o caso de Bárbara deveria ser reavaliado com mais cuidado.
"Caberia uma análise mais aprofundada, inclusive, uma revogação dessa medida caso seja comprovado que a criança não passou por uma situação vexatória e que isso na verdade foi uma demonstração pedagógica de como não devemos praticar atos excludentes. Ao que me parece, essa mãe simplesmente estava educando seu filho dizendo o seguinte: "Você não deve excluir ninguém por conta de qualquer característica física que um outro indivíduo que pertence à nossa sociedade apresente".
A mãe do menino pede ainda que o Conselho Tutelar leve em conta toda o cotidiano compartilhado por ela com a criança e avó da crianças nas redes sociais. "Por que tirar a criança da mãe por um fato isolado já que tem uma história de sete anos nas redes sociais que mostram que meu filho recebe todo o amor e carinho", afirma.
A advogada Amanda Oliveira, acredita que a decisão de tirar a criança da mãe, mesmo que provisório, precisa ser revista.
"Que decisão é essa que deveria ser imparcial e com foco na decisão da criança e do adolescente, que permite que ela seja retirada do seu lar onde ela tem todas as estruturas e seja colocada em um lar substituto – mesmo que de maneira provisória e não definitiva –, mas que a sua saúde, a sua segurança e o seu bem-estar não sejam completamente providos?".
Assim, o menino continua longe da mãe obedecendo a uma decisão, que segundo entendimento da lei, é para o seu próprio bem.
A reportagem entrou em contato com a Prefeitura de Belém e o Conselho Tutelar de Belém acerca do caso, mas até o fechamento desta reportagem, eles não responderam aos nossos questionamentos.
Fonte: Brasil de Fato
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