terça-feira, 18 de maio de 2021

Com pandemia, denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes crescem, mas são feitas de forma tardia.

 

"Hoje, de manhã, ela olhou pra mim e falou assim: 'Eu acordei com medo'. E eu falei: 'Com medo do quê?' E ela disse: 'Com medo de ter que voltar pra casa'." O medo é de uma criança de dez anos que, há cinco meses, mora com os tios. No boletim de ocorrência, a mãe da menina assume que a filha era abusada desde os quatro anos. Quem conta é a tia, uma professora universitária de 37 anos, que não quer ser identificada e viu a história se repetir.

M* nasceu em 1983 e passou a ser abusada pela mãe no fim da década de 1980. Aos 12 anos, começou a se rebelar contra a violência, desenvolveu bulimia e, aos 24 anos, saiu de casa. Ela nunca mais falou com a mãe e, até hoje, faz tratamento psicológico e psiquiátrico.

Casos assim ficaram mais comuns durante a pandemia, dizem os especialistas. Só no Conselho Tutelar do Rio Pequeno e Raposo Tavares, na Zona Oeste de São Paulo, as denúncias de abuso sexual, agressão física e maus-tratos contra crianças e adolescentes aumentaram 670% de janeiro a abril deste ano em relação à mesma época do ano passado. Se comparadas as queixas feitas nos quatro primeiros meses de 2019 com igual período deste ano, o crescimento foi de 215%. 

De acordo com o conselheiro tutelar Gledson Deziatto, militante dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, além dos números, há outro problema: o que antes era denunciado como suspeita, com a pandemia virou o que eles chamam de "denúncia tardia".

"Antes, as escolas percebiam que algo não ia bem com a criança e já acionavam o Conselho Tutelar. Quando as escolas e creches foram fechadas, o perfil mudou, e as queixas passaram a ser feitas por vizinhos ou pessoas da família, mas, até que o denunciante percebesse o que estava ocorrendo, muitas vezes, o abuso havia sido cometido rotineiramente", afirmou.

Especialistas alertam que 80% dos casos são registrados dentro de casa, justamente por quem deveria proteger as crianças, e a maioria envolve pessoas da família. Grande parte das vítimas são meninas.

É o caso de M*, que nasceu em uma família de classe média alta e que exemplifica o que acontece com a maioria dos meninos e das meninas vítimas de abuso: "Eu não tinha noção de que aquilo era um abuso sexual. Eu sabia que aquilo não era normal, mas eu só comecei a perceber que tinha alguma coisa errada ali quando eu me tornei adolescente".

Casada, a professora universitária não quis ter filhos com medo, segundo ela, de que alguém fizesse com a criança o que, um dia, fizeram com ela. "As pessoas falam: 'Deleta isso da sua vida', como se eu fosse um robô, como se eu fosse um computador que tem a tecla 'Delete'. Eu não sou robô, eu não sou um computador. Eu vou carregar isso comigo para sempre. É uma coisa que dá pra você amortecer, mas esquecer não dá. Não dá pra você apagar da sua vida, é impossível."

Há cinco meses, a professora universitária começou a criar a sobrinha do marido, que foi abusada pelo pai, dependente químico. A menina foi entregue a ela pelos próprios pais apenas com os documentos e uma mala pequena com roupas. Hoje, o processo de guarda corre na Justiça.

"Eu tirei ela dessa situação cedo. E eu nunca fui tirada dessa situação. Nós somos muito apegadas uma à outra. Nós nos completamos na falta daquele amor que não tivemos."

No caso da garota, foi aplicado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que, na época dos abusos sofridos pela professora, nem sequer existia.

Por enquanto, o pai da menina está solto. Este é justamente um dos maiores entraves na busca pela redução do número de casos. Segundo o advogado Ariel de Castro Alves, especialista em direitos da infância e da juventude, menos de 10% dos agressores são punidos. "Temos que ter a consciência de que muitas crianças e adolescentes no Brasil estão dormindo, estão vivendo com seus inimigos, exatamente quem deveria protegê-los", destaca Alves.

Autoconhecimento e Defesa

Para ajudar a ensinar meninos e meninas a se proteger de abusos, profissionais de várias áreas – educação, comunicação, direito, medicina e psicologia – se uniram e criaram uma cartilha que explica as partes do corpo e convida as crianças a falar ou desenhar sobre elas mesmas.

A publicação já foi traduzida para o inglês e o espanhol. Premiado no ano passado, o projeto “Eu me Protejo” distribui os materiais gratuitamente pela internet. “É um mito achar que isso não pode acontecer na família de qualquer um”, diz Patrícia Almeida, coordenadora da iniciativa. 

Fonte: G1

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