segunda-feira, 13 de julho de 2020

Estatuto da Criança e Adolescente e o Conselho Tutelar: 30 anos depois...



A cada um o que é seu! 
“Cuique Suum”
Por: George Luis Bonifácio de Sousa


Ao comemorarmos o aniversário da lei federal nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, por mais inusitado que possa parecer, se faz interessante voltarmos um pouco no tempo. Tal proposta de um breve retorno visa provocar a reflexão quanto aos avanços e desafios imposto à efetivação de tal importante diploma legal.

Um breve resgate no tempo quando da virada do milênio/2001:

“(...)No sistema de proteção integral a que se refere o artigo primeiro do Estatuto, não há mais autoridades arbitrárias, inquisidoras, ditatoriais. Daquilo que estava concentrado no juiz, uma parte agora é a livre competência do Conselho Municipal de Direitos (que controla desvios e omissões nas várias políticas públicas) e registra programas da política de assistência social garantindo, nesta, o princípio da prioridade absoluta a crianças e adolescentes com programas em regime jurídico de orientação e apoio sócio-familiar, apoio sócio educativo em meio aberto, colocação familiar, ¹abrigo, liberdade assistida e internação. Não há mais retaguarda de nenhuma autoridade discricionária. Há programas de vanguarda decididos, coordenados e controlados pelo Conselho Municipal. Há um Fundo Municipal para propiciar que garantam o princípio da prioridade absoluta a que se referem os artigos 227 da Constituição Federal e quarto do Estatuto. 
Outra parte do que era competência do juiz foi para o Conselho Tutelar. Situações em que crianças e adolescentes são vítimas por violação de direitos e em que crianças são vitimadoras de direitos alheios segundo o Código penal (ver artigos 103 e 105 do Estatuto) não são mais apreciados pelo juiz, mas sim, pelo conselho, que representa a sociedade em nível administrativo (se houver conflito entre a decisão do Conselho e as pessoas interessadas, como qualquer demanda, o caso pode ser levado para a apreciação do novo Juiz da Infância e Juventude). 
Um erro flagrante que se encontra em muitos municípios é a percepção de que o que antes era a retaguarda do juiz agora seria retaguarda do... Conselho Tutelar. Quando isso ocorre é porque as pessoas não aprenderam a passar da doutrina da situação irregular para o sistema da proteção integral. O novo Conselho Tutelar não substitui o velho juiz em suas arbitrariedades. Ele assume competências do antigo juiz para fazer coisas novas que não eram feitas antes. 
Essas coisas consistem em garantir que os problemas de crianças e adolescentes sejam resolvidos junto à família e à comunidade em programas em regime de orientação e apoio sócio-familiar, apoio sócio educativo em meio aberto, colocação familiar, abrigo, liberdade assistida, semi-liberdade e internação. 
Nunca se pode admitir que conselheiros individualmente façam coisas que são de assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, orientadores educacionais, auxiliares administrativos, recreadores, advogados etc. 
Quando os conselheiros fazem essas coisas, eles praticam o crime de usurpação de função pública ou a contravenção de exercício ilegal de profissão. E mais: essas coisas devem ser feitas livremente, sem precisar de uma ordem ou uma determinação de Conselho Tutelar ou quem quer que seja. 
Assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, advogados etc. são profissionais que não dependem da ordem de ninguém (numa sociedade livre e democrática) para exercer sua profissão. E os cidadãos (numa sociedade livre e democrática) não dependem de ordem de nenhuma autoridade discricionária para ter acesso para ter acesso aos préstimos de um profissional. Trata-se, portanto, de grave desvio quando cidadãos comuns ou autoridades querem que os programas de proteção só façam coisas, quando determinadas pelo Conselho Tutelar. Isso é voltar ao velho sistema burocrático, centralizador, autoritário, dizendo que se está praticando o novo. 
Para que tenhamos um sistema de proteção integral, as famílias, as escolas, as ONGs em seus bairros devem ser dotados de acesso a programas do Artigo 90 do Estatuto em regime de: 1. orientação e apoio sócio-familiar; 2. apoio sócio-educativo em meio aberto; 3. colocação familiar; 4. abrigo (para crianças e adolescentes que eventualmente se vejam como vítimas nos mais variados níveis de vitimação). E acesso aos programas em regime de liberdade assistida; 2. semi-liberdade e 3. Internação (para cumprir sentenças de reparação do dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semi-liberdade ou internação, a adolescentes que hajam sido declarados infratores pelo juiz e devam ser punidos com medidas chamadas de sócio-educativas por haverem violado a Lei Criminal brasileira fazendo vítimas). 
Resumindo: quando vítimas, crianças e adolescentes devem ser protegidos em programas de proteção ofertados às comunidades e às famílias, programas esses aprovados e coordenados no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (conselho que congrega metade de membros da Prefeitura e metade dos membros representando ONGs da sociedade civil). Se violados no direito de livre acesso a esses programas, se pode ir ao Conselho Tutelar que, apreciando o conflito assim gerado, pode determinar que um programa atenda à criança e ao adolescente ameaçado ou violado em seus direitos. Ao Conselho Tutelar se vai, não quando se precisa de um serviço (a ser prestado por programas à disposição da população em política pública), mas quando direitos foram ameaçados ou violados. Entre esses direitos, o livre acesso aos serviços dos programas que propiciam atenção por profissional especializado. 
Quando vitimadoras, crianças serão submetidas a medidas de proteção, cumpridas por programas de proteção, aplicadas (nunca executadas) pelo Conselho Tutelar. Quando vitimadores, os adolescentes serão julgados pelo Juiz da Infância, garantindo pleno direito de defesa do acusado. Se culpados dos atos que lhe são imputados (que lhes são atribuídos) pelo Promotor da Infância e da Juventude (depois da correta investigação pela Polícia Civil), o juiz aplicará medidas de: 1. reparação do dano; 2. prestação de serviço à comunidade; 3. liberdade assistida; 4. semiliberdade; 5. Internação (art. 112) que serão cumpridas em programas de regime de: 1. liberdade assistida; 2. semi-liberdade; 3. Internação (Artigo 90).   
Verifica-se por aí que a reparação do dano e a prestação de serviços à comunidade podem ser cumpridas em regime de liberdade assistida, semiliberdade ou internação. Logicamente, a liberdade assistida só pode ser cumprida em regime de liberdade assistida, a semi-liberdade em regime de semi-liberdade e a internação em regime de internação. Ou seja, no sistema da proteção integral (quer dizer: proteção de todos, por todas as formas possíveis, em todos os momentos possíveis) não há espaço para impunidades, mas também não pode haver espaço para arbitrariedades, burocratismos ou desvios de função. 
A proteção integral depende de constante acompanhamento da sociedade através de seus dois grandes conselhos de Estado em nível municipal: Conselhos de Direitos para questões de direitos difusos (direitos difusamente reconhecidos sem que se possam identificar imediatamente seus beneficiários) e Conselho Tutelar para questões de direitos individuais, direitos esses que devem ter sempre à sua disposição os programas de proteção para que não seja necessário ir a uma autoridade (como o Conselho Tutelar) para burocraticamente se ter o direito de gozar de seus benefícios. 
Evidentemente há muitos outros aspectos da virada do milênio introduzida pelo Estatuto que não podemos tratar aqui por limitações de espaço. Que fique ao menos a idéia de que a nova Era ou nos estimula a mudarmos nossas percepções, nossa vontade pública, nosso padrão cotidiano de agir, ou não teremos saído do século XX. E não saindo, regredíramos para muito antes do século XX, contaminados pelo lado sombrio da natureza humana que todos os dias nos põe, pela televisão, pelo rádio, pelos jornais, pela internet em contacto conosco mesmos, travestidos de trogloditas, através das práticas da violência, da arbitrariedade, da exclusão social. Está ao nosso alcance mudar a percepção e entrar no século XXI. Nele estão o cidadão criança e o cidadão adolescente.” (In verbis)

(Dez anos de Cidadania – Cadernos Caminho para a Cidadania/2001-Editora UFMS/ Série Escola de Conselhos. pp.34-36/Edson Sêda) ¹(A terminologia “abrigo” no texto acima, decorre da legislação em vigência a época da publicação do mesmo. Só com o advento vigência da Lei Federal nº 12.010/2009, a terminologia abrigo foi substituída por “Acolhimento Institucional.”) 

Neste dia ao comemorarmos o trigésimo aniversário da aprovação da Lei Federal nº 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente. Legislação essa que trouxe o reconhecimento das crianças e dos adolescentes como sujeitos de direitos. É imperioso destacarmos a importância do Estatuto derivar exatamente disso: da reafirmação da proteção de pessoas que vivem em períodos de intenso desenvolvimento psicológico, físico, moral e social. 

Portanto, o Estatuto veio para colocar a Constituição em prática (artigo nº 227). Essa prática, conforme nossa Lei Maior, dá-se pela família, sociedade e do Estado, por meio da promoção de programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente, sendo também prevista a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas. 

Neste diapasão da participação popular, a lei criou importante espaço de intervenção, denominado Conselho Tutelar; que infelizmente ainda hoje, mesmo que já decorridos 30 anos da aprovação da Lei, quando falamos do Conselho Tutelar, nos deparamos com uma insistente série de equívocos quanto ao entendimento natureza jurídica do órgão (“autônomo”) e as atribuições que lhe conferiu o legislador federal.

(...)





George Luís Bonifácio de Sousa: Militante de Direitos Humanos, Instrutor na Área da Infância e Adolescência, Graduando do Curso de Direito/Faculdade Estácio/Natal. Consultor Técnico e Membro do Observatório Nordeste dos Direitos da Criança e do Adolescente - ONDECA 


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