sábado, 29 de dezembro de 2018

CRÔNICA DE SAUDADE PARA UMA CIDADE QUE FAZ 65 ANOS

Santa Cruz do Capibaribe iria fazer 10 anos quando nasci. Uma criança recebendo outra. Ao longo da minha primeira década, Santa Cruz vivia a sua segunda. Pequena, ia da igreja matriz ao cruzeiro, da ponte velha sobre o Tapera até a Rua dos Doidos, da Rua Grande até a maternidade (hoje Hospital Municipal); e pronto: acabava-se a cidade. Todo o mais se chamava aventura no meio da caatinga que a circundava.
Em tempos tranquilos, vagava por todos os lugares, criança curiosa que era. Com ânsia de descobrir e dominar o meu mundo, ia andar de bicicleta no campo de aviação, na hoje rodovia para o Pará e Poço Fundo, e passava zunindo pela Imburana (lugar expressamente proibido para as crianças), tentando flagrar as coxas de alguma meretriz descuidada; subia o Capibaribe, pelas margens e pela areia, até os coqueiros de Neco de Lucas; atravessava o rio, equilibrando-me nas frágeis tábuas e pedras, passava pela única rua de São Domingos e ia até a Barra ou o Bandeira; ou subia a serra, na Volta do Serrote, onde, certa vez, uma cobra-cipó passou entre meus dedos e eu desembestei ladeira abaixo, gritando de medo; as pedras da Bicuda, único lugar do rio em que dava pra tomar banho o ano todo, era outro lugar frequentado (só pra "bater perna", que eu nunca aprendi a nadar); a festa de São Miguel, em setembro, enchia os ares com os ecos da Jovem Guarda, nos alto-falantes dos parques de diversão, me ensinando as músicas que eu assassino até hoje; às noites, acompanhava meu pai nas famosas e imperdíveis malas da Rua Grande – só quem é daquele tempo sabe a extensão desse prazer.


O centro da cidade, nos anos 70: em primeiro plano, o Beco de João Pereira; ao centro, o Banco do Brasil; por trás, o Cine Bandeirante, de Joel Moraes. [Foto: Arnaldo Vitorino]

No cinema de Joel, de som rouco, não dava para entender a maior parte das falas, quando o filme era nacional, sem legenda (Teixeirinha ou Mazaroppi, que eram os únicos a que meu pai me permitia assistir, a maioria das vezes, com ele) – só se ouvia mais ou menos bem o noticiário do Canal 100, com notícias de meses atrás, mas que ainda eram novidade para mim.
A feira das segundas, na Rua Grande, desde a primeira gameleira, em frente à casa do padre, até a escola de Maria Lúcia Alves, mas também descendo pelos becos do Padre, de Braz e de João Pereira até a Rua do Pátio, onde a feira se estendia também, e onde as novidades pululavam aos meus olhos de menino. Passava boa parte do dia, “de cima a baixo”, sem um puto no bolso para comprar uma buga sequer, só acompanhando o movimento buliçoso do comércio de rua.

A feira na Rua Grande, às segundas-feiras, à sombra das gameleiras. [Foto: Aragão Foto]

No Luiz Alves, os primeiros contatos com os estudos formais e com gente fora do meu casulo, dos quais restaram na minha lembrança os mais marcantes: Carlos Lisboa (o único com o qual nunca perdi contato), Valdilene Nascimento, Roseli Silva (as duas que reencontrei, graças ao milagre da internet), Eva Frutuoso (onde andará a primeira das minhas tantas paixões platônicas?!), Paulo Roberto (filho de Firmino, que era primo de meu pai), Fernando Papaco (garotinho bom de bola, que ia lá pra casa, para brincarmos – não de bola, naturalmente, que sempre fui uma desgraça no futebol).
Os vizinhos da Rua do Ginásio: Aderval (filho de seu Vitor – que todo mundo oxitonava a pronúncia: Vitôr – e dona Luzinete), irmão de Alba (com quem vivi a aventura mais antiga que minha mente preservou: fugimos de casa, os dois, e conseguimos chegar até a distante 29 de Dezembro, no prédio da Estatística); e Lulinha, filho de Amaro Barbeiro, com os quais descobrimos muita coisa daquele mundo enorme demais pra nós; também Lindomar e Nenem, os filhos de Tinto Coureiro e dona Dalvina.

Quando o Capibaribe botava cheia, só se podia passar de canoa para São Domingos e as demais localidades além rio. [Foto sem identificação]

Na Rua do Alto, moramos pouco tempo, guardei na lembrança somente Demir, irmão de Valdilene, filho de seu Plácido e dona Ana, que ficou inconsolável quando eu me mudei para o longínquo Bairro Novo, onde a turma de amigos se fez um pouco maior: as filhas de Antonio Saturnino (Lúcia, Cleonice, Marlene, Marli e Avani); os de João Balbino (George, Júnior e Maria Luiza); Lenilton (filho de dona Helena); Nildo (filho de Artur do Peixe); Abdias (Tica) e Amara (Memen), filhos de Corina, que moravam numa aconchegante e pequenina casa, na beira da lagoa, hoje Parque Florestal; Rômulo e Vaneide (filhos de Zé Dedelo e dona Dora), os filhos de Nego de Badeca e de Zé da Pipoca, casado com dona Alice, prima de meu pai.

A velha ponte, sobre o Riacho Tapera, era o começo da cidade, e virava atração concorrida, em tempos de enchente. [Foto: sem identificação]

Santa Cruz do Capibaribe que eu amava, mas lhe sentia pequena demais, e de onde parti para o mundo de Caruaru, aos 17 anos. Voltei 5 anos depois para trabalhar, para ajudar a fazer o Jornal Capibaribe, mas a cidade já perdera muito do encanto de antes. Agora eu era o que jamais deixei de ser: um filho ausente, sempre em outras plagas, Santa Cruz transformada num amontoado de lembranças, que mexem dolorosamente comigo, pela certeza do nunca mais que a cidade se transformou para mim.


No vídeo, todo o talento do multiartista Fábio Xavier, fazendo um nostálgico e rico passeio pela Rua Grande, através da xilogravura e da música.




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